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eternuridade
Eternuridade, s.f. (do lat. aeternitate por aglutinação com do lat. ternu). Qualidade efémera do que é terno. O que há de eterno no transitório. Afecto muito longo; tristeza suave e demorada. textos e fotos: gouveiamonteiro(at)gmail(dot)com LIGAÇÕES
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14 de setembro de 2003
O milagre (IX)

"A terrra moral também é redonda!.... ainda há mais outro mundo para descobrir - até mais do que um! Para os barcos filósofos!"
A vida é um exercício de escala. A visibilidade depende dos olhos. Sem uma razão única e condenados a um tamanho, teremos sempre, ainda assim, motivos para determinar acções eficazes. Todos os homens agem. O povo tem absoluta competência para comer porque tem metafísica bastante para não pensar em nada, quando é mesmo preciso.
As mesmas razões que promovem a nossa ignorância exigem as nossas melhoras. Tendo as causas e os efeitos demasiado misturados e ausentes, seremos sempre capazes de distinguir sintomas; de identificar possibilidades de ter sido melhor antes, isolando maneiras de ser muito mais eficaz a seguir. Trata-se apenas de processar informação e crescer. Muito lenta, a hesitação idealista é mais cruel e irreparável do que o erro. O lance é a condição absoluta do milagre.
E quantos pressentimentos e sinais já nos enviaram de cima de que é mais do que tempo de agir, de considerar o minuto presente como o único e de fazer perpétua volúpia do nosso tormento. É o nosso naufrágio azul. A tarefa destes dias será essencialmente a procura de conhecimento orgânico, o único absolutamente útil e viável.
Trata-se de um mergulho perigoso "ao fundo do nada para procurar o novo". Sempre. O porto não existe mas, à falta de sistemas totais, poderemos sempre encontrar ferramentas honestamente falíveis, mas capazes. Daí o poder secreto que existe na forma mil vezes copiada de um martelo.
Existe em todos os dias a hipótese de voltar à superfície com vida para voltar a baixo com confiança. Mesmo sem Todo, face à demora do lance ideal, do feito absoluto, é ainda possível atingir um equilíbrio esforçado entre o resultado e a qualidade da acção. Ser-se contagioso muitas vezes, marcando uma trajectória que ao mesmo tempo sobe e desce. Disseminar para recuperar as palavras que espalhamos. Estará sempre por acabar esta religião desconsiderada que acredita nos despojos do verbo e na poderosa magia do seu jogo.
Uma série de pequenos esforços semelhantes concorrem para um grande resultado. Qualquer ideia é em si dotada de uma vida imortal, como uma pessoa. Todas as formas criadas, ainda que pelo homem, são imortais. A forma é independente da matéria e não são as moléculas que constituem a forma.
Se pouco depois de encontrarmos o que é novo deixarmos de precisar dele é exactamente porque acabámos de lhe extrair a necessidade e podemos continuar com fome. Com uma vontade melhor e mais esclarecida, insaciável até ver. Difícil é só continuar a caminho, já que tantas vezes se avança para trás. Jamais nos abandonará o desejo. Coragem.
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O lance (VIII)

Tal como o rochedo onde surge a alucinação vã da sereia, todos os lances fixam o infinito num resultado único. Mas, como o rochedo e a generalidade do pensamento, o lance é imaginário. O acto poético fixa uma ideia segundo o sonho herdado de uma linhagem de poetas. As palavras devem ser resgatadas ao acaso para se transformarem em noções essenciais. Por acto que se assemelha ao lance de dados (que das séries de possibilidades extrai um resultado único que se torna inquestionável), a poesia fixa o infinito. É esse o número último, o resultado do lance que o velho parece não cumprir, mas que surge na imaginação do poeta associado ao aparecimento de um grupo de estrelas que, como os pontos na face do dado, surgem no firmamento.
Os fogos celestes que romperam a vigilância ao marinheiro sagram agora o derradeiro total. O lance ideal disseminou-se até à superfície superior e vaga da noite. Assim, esclarecido sobre a inutilidade da escolha, o velho prefere deixá-la incerta. Mas a simples lembrança desse acto ambíguo basta para que, no vazio da página dos céus, se desencadeie o lance ideal. O número, a verdade, deverão perder-se para sempre. Ainda assim surgem nas estrelas, por cima de todas as tragédias.
Depois dos videntes delirantes a poesia aspira agora à verdadeira dignidade da justificação metafísica. Usando processos exclusivamente analógicos e intelectuais, já não se atém a ser expressão aproximativa de um temperamento; inventário de inspirações e fenómenos efémeros; manifestação de um vago ideal.
"Há no verbo qualquer coisa de sagrado que nos impede de tranformá-lo num jogo de azar. É uma religião universal, criada pelos alquimistas do pensamento, uma religião que se desprende do homem, considerado como momento divino condenado a soberbas e ambícias."
Toda a espécie de poesia deve receber em si o próprio sentido e explicação do universo, ainda que por medrosa aproximação. O abismo essencial, aquele que faz a incomunicabiliade, continua por transpôr. Por isso, o homem deriva para conhecer a sua geografia. Não é sentado que lá se chega.
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Auto-Insuficiência (VII)

A família escapa ao infinito. Pura matemática, é uma sucessão de finitos. O rochedo aparece ao náufrago como uma hipótese de salvação: talvez consiga nadar e salvar-se. Mas o abismo é demasiado; o rochedo logo se desfaz. Símbolo terminal de pertença à humanidade - à linha - o rochedo é falso. O homem só chega à pureza quando deixar de o ser. Até lá, até à morte, está preso a uma figura que lhe atrasa a ideia.
A casa, a família, a pátria, os jogos de computador, o jornal da manhã e os demais estimulantes atormentam as mentes ansiosas que dependem de emoções duras. Tanto as garras dos estimulantes como a sua utilidade são antigas. Mas todas as pátrias são falsas e dão ressaca.
Não é tudo a mesma coisa, e será pouco rigoroso enfiar no mesmo saco a herança genética, as diferentes fórmulas de entretenimento e o deslumbramento que proporcionam os paraísos artifíciais das drogas. Mas a verdade é que depois dos sistemas pré-fabricados nada substitui ou dispensa o processo lento e penoso de auto-arquitectura a que todo o espírito humano se terá que sujeitar. Não há respostas para nada a não ser em nós próprios. Não há nada que nos livre de provarmos todos os nossos venenos para depois então os sabermos evitar. Só a estupidez poderá evitar tais aborrecimentos.
Há homens de verdade que enquanto vivos estarão sempre incompletos. Este tipo de paixão é o resultado directo de uma falta de forma. Esta descompensação comporta riscos duros, mas previsiveis. Tem como efeito um duvidoso atrofiamento do agir, uma preguiça cósmica que tudo deita a perder em quantidades muito pequenas de cada vez.
O espectador de terríveis batalhas tem que visualizar a diferença entre a necessidade de felicidade e a brutal inflexibilidade da realidade física. Não há estrada imaginária por onde algum homem tenha conseguido passar. A Razão não deixará de ser simples e o universo será com certeza o efeito secundário de algo muito mais sério. O caleidoscópio é infinito.
Tudo para dizer que mais cedo ou mais tarde acabaremos sempre numa cama demasiado estreita. A solidão não tem remédio para o facto de não haver comunhão possível senão a conseguimos interiormente. O mundo ainda aqui está.
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Eternuridade (VI)

Coisa rara de propriedades ainda não completamente investigadas, a eternuridade manifesta-se nos momentos do transitório que se revelam fora do tempo por obra das insinuosas forças do esquecimento e da memória. A eternuridade alimenta-se d' "o que há de poético no histórico, extraindo o que há de eterno no provisório (...) A modernidade é o transitório, é a metade da arte cuja outra metade é o eterno e o imutável. Numa palavra, para que toda a modernidade seja digna de tornar-se eternuridade é preciso extrair dela a beleza misteriosa que a vida humana coloca nela."
E então, num cortar de respiração, o diafragma colado aos pulmões, experimenta-se um prazer calmo e a certeza de que há forças cimeiras que, nesses momentos, piscam olhos de relógio.
"Existe um duelo entre a vontade de tudo ver nada esquecendo e a faculdade da memória, que ganhou um hábito de absorver vivamente a cor geral e a silhueta, o arabesco do contorno." Mas a memória inclui o esquecimento e assim tudo amadurece no espírito em estranhas relações que se demoram ocultas apesar de sentidas e de, por isso, obedecidas.
E há também e para todos a democrática ternura. O sossego secreto de coleccionar banhos de antiguidade em dias simples. O imaginário dos homens é analógico e só por processos desta natureza se consegue intuir as coisas verdadeiramente importantes. Só através do véu sinuoso da metáfora se conseguem caçar imanências, eclipses demasiado brutos para serem olhados a nú. Até um naufrago tem consolo.
"E se alguma vez, nos degraus de um palácio, na erva verde de uma vala, na solidão baça do vosso quarto, acordais, já diminuida ou desaparecida a embriaguez perguntai ao vento, à vaga, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, a ave, o relógio, vos responderão: "São horas de vos embriagardes! Para não serdes os escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos sem cessar! de vinho, de poesia ou de virtude, à vossa escolha."
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A vontade (V)

"É obrigação do homem estudar, em todos os seus modos, nas obras da natureza ou nas obras da humanidade, a universal e eterna lei da gradação, do aos poucos, do pouco a pouco e do tudo-nada. As forças progressivas."
As altas e as baixas esferas do mundo pronunciam-se sobre os mesmos assuntos. Quando descemos mais fundo numa ideia qualquer que há vários dias nos enche o pensamento, tendo os canais abertos a uma verdade nova, temos a sensação de esbarrar a toda a hora com confirmações que saltam de locais improváveis que quase nos esquecíamos de investigar.
Todos os homens esbarram em intuições parecidas. Quer tenham, em virtude de vidas mais ou menos sugestionadas, ferramentas muito ou pouco luminosas. Quer esteja em cena a estupidez ou se mostre o talento, o que está em causa são sempre correspondências, que se escondem atrás de acontecimentos simples.
As correspondências são um sucedâneo de deus encontrado pelos poetas, por todos os que não acreditando n'Ele não deixam de sentir um conjunto de perplexidades e de exaltações naturais e místicas. De criatura para criatura variam apenas (mas muito) os graus de consciência com que sucedem os processos de revelação. É frequente espíritos muito menos esclarecidos serem muito mais capazes.
O problema inicial reside na impossibilidade de fazer a estatística geral de tudo o que emerge, de tudo o que surge. São demasiadas as coisas, demasiado várias. Só algumas políticas, a generalidade da Televisão e as estrelas mais à mostra se podem transformar em número. Tudo o resto é já demasiado cinzento; impossível de distinguir.
"O mundo só caminha através do mal-entendido. É através do mal-entendido geral que toda a gente se põe de acordo. Porque se, por infelicidade, as pessoas se compreendessem, nunca poderiam pôr-se de acordo." "Aprofundar uma questão não é resolvê-la."
A multiplicação das técnicas e a aceleração do que acontece são tais que não existe centro estável. O tudo nada com que se pode sonhar é que isso implique a multiplicação dos mecanismos de acção. Esse legítimo delírio far-nos-ia caminhar para uma situação carregada de sentido, próxima da ficção artística. Pelo contrário vemos com frequência o ser humano a crashar quando atropelado por uma catadupa de inputs. A cair na ataraxia dos cépticos.
A sabedoria multi-tarefas que aqui se pede chama-se Filosofia Instantânea e deve estar sempre pronta. "O homem de espírito, aquele que nunca se porá de acordo com ninguém, deverá aplicar-se a amar a conversa dos imbecis e a leitura dos maus livros." Tudo isto existe, tudo isto é número, tudo isto é falso.
Porque o que é preciso é uma sabedoria 007. O que é urgente é escapar, mesmo do que não se conhece. Necessário é resolver mesmo o que não se domina. Viver sempre e apesar dos relógios, progredindo com a cumplicidade dos outros e de toda a beleza viva que há no mundo.
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13 de setembro de 2003
O ridículo (IV)

"Há em todos os homens duas pulsões simultâneas, uma na direcção de Deus, outra na direcção de Satã. A invocação a Deus, espiritualidade, é um desejo de subir de degrau; a invocação a Satã é um desejo de descer de degrau; animalidade; alegria de descer".
A escolha, bem sabemos, implica a angústia de jamais conhecer o que se pretere. À beira da morte o náufrago vê uma sereia dúbia. Tem pressa de ser heróico e chegar à revelação. Vai morrer e não acredita que a vida dos filhos possa ser melhor. Não tem centro. Todas as escolhas se tornam absurdas. A vida não tem garantia. Não há sequer ciência que alguma vez tenha percebido o desígnio superior e natural de ser um homem ou uma mulher. Ai!
"Facilmente aceitamos a realidade, talvez por intuirmos que nada é real.
- Perguntei-lhe o que sabia da Odisseia. A prática do grego era-lhe penosa; tive que repetir a pergunta.
- Muito pouco.- disse - Já se terão passado mais de mil e cem anos desde que a escrevi.
Ser imortal é insignificante; com excepção do homem todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o divino, o terrível, o incompreensível é saber-se mortal. Doutrinada num exercício de séculos, a república dos homens imortais atingira a perfeicção da tolerância e quase do desdém. Sabia que num prazo infinito todas as coisas acontecem a todos os homens. Assim como nos jogos de azar os pares e os ímpares tendem para o equilíbrio, assim também o talento e a estupidez se anulam. O pensamento mais fugaz obedece a um desenho invisivel e pode coroar ou inaugurar uma forma secreta. Encarados assim, todos os actos são justos, mas também indiferentes. Não há méritos morais ou intelectuais. Homero escreveu a Odisseia; dado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias ou mudanças, o impossível seria não se escrever, sequer uma vez, a Odisseia. Ninguém é alguém, um só homem imortal é todos os homens."
"Em qualquer acto onde o acaso esteja em jogo, é sempre o acaso que se cumpre. Quer ele se esconda, quer ele se confirme, é sempre o acaso que se manifesta". O infinito é bem pouca coisa e o universo está todo no papel. O Absoluto deverá conter o acaso como o infinito o finito. Procuramos em todo o lado a verdade e só nos aparecem coisas.
.: Publicado por lgm @ 9/13/2003 - 0 Comentário(s)
O artista (III)

A um instante de deixar a condição humana o náufrago tem que olhar à volta e tirar conclusões. Depressa, já que os reflexos são a chave dos predadores. O náufrago carrega há séculos o peso bélico de biliões de anos de armazenamento e caça. Por isso ainda é estúpido sem querer. A dúvida é lenta. Se muito penso, logo morro é a frase de todos os homens com pressa. A emancipação surge quando se age reflectidamente, mas com força.
Com os dados absolutos dentro da mão fechada o mestre-do-navio-que-deixou-de-o-ser sente que o número único que não pode ser outro ainda não está resolvido. Que a verdade única que o pode salvar demora, mas está pronta. O resultado do lance final de dados que se faz às portas da morte para descobrir a verdade da vida parece contrariar a predominância do acaso. Mas, para tudo conhecer, o homem tem que se despir do espaço.
Nesta quase derradeira altura o náufrago ainda pensa. O esforço que implica a realização do último e decisivo lance é mínimo, mas ele hesita ainda mais. Com o cadáver pelo braço ele é o artista perfeccionista, infinitamente duvidante. Se ele não realizar o lance, se não tentar descobrir o número único e perceber o mistério do mundo terá que sofrer a perseguição eterna de todos os seus antecessores. Vivos, mortos e por nascer. Todos os fantasmas nos exigem um lance, um golpe de asa decisivo que nos liberte do acaso. Que nos salve de não existir verdade no mundo.
A insanidade que nos faz perder dias a justificar acções passadas não resulta de nenhuma estupidez congénita. Acontece porque nada é certo senão a morte. A mania da hesitação repete pela eternidade a ancestral insânia de querer abolir o acaso onde tudo é hilaridade e horror; estrume e açúcar.

"As inclinações do ânimo fazem e destroem tudo. Costuma dizer-se que os nautas têm um receio extremo da calmaria e que só desejam vento. Os movimentos do ânimo são, no caso dos homens, esses ventos necessários para pôr tudo em movimento, apesar deles por vezes provocarem tempestades."
A morte não está longe mas leva tempo. A pequena razão viril de um homem é humana, não é ideal. Ideal só uma pluma branca, leve e com a verdade risível da primeira sabedoria. Ao longo da vida o espirito humano percorre uma escada. Chega à cripta onde estão os túmulos e as cinzas de todos os antepassados. Os degraus que percorreu são feitos das pedras funerárias de todas as sombras e o ser absoluto terá que passar por todos os degraus reunindo em si o percurso do desenvolvimento espiritual da humanidade. O caminho de todos os que procuram, desde a origem, o Absoluto.
E o náufrago já só sente:
- Julgei ter visto uma espiral. Devo ter-me enganado porque agora vejo o discurso da análise. De um lado o discurso da análise, do outro o discurso da revelação. O vento leva as minhas palavras, mas trá-las de volta. É a implosão do discurso rumo à verdade.
O náufrago é finalmente submergido pelas ondas, que o transformam em sombra pura. Destas núpcias macabras nasce uma chance ociosa. O desgraçado e as vagas partilham um dilema maligno que só pode ter uma de duas soluções: ou o velho se deixa ir nas águas no definitivo silêncio das espumas sem cumprir o seu designio; ou o náufrago tenta resistir ainda um pouco mais para, em nome das ondas, realizar um lance de dados cujo resultado só as aguas guardariam.
Qualquer que seja a escolha, as consequências serão idênticas. O sofrimento será o mesmo. Não somos esquizofrénicos por malformação ou doença, apenas porque nada nos justifica a não ser nós próprios. A única coisa que poderá legitimar um acto será a forma como o encadeamos com o seguinte. Isto se tivermos o especial cuidado de dar algum sentido à pequena ficção histórica que constitui e forma a vida de cada um. O problema é que essa pequena história não tem moral nem propósito enquanto não se inventar um simulacro novo. Enquanto não surgir um livro maior do que a Bíblia. Mas se não há um livro falante que nos ensine a agir e a parecer, então há o quê?
"Há a terra, que é semelhante a grandes lages de pedra sobre as quais todos querem escrever o nome. Ora, uma vez cheias todas as lages, é preciso apagar os nomes velhos e gastos para escrever outros no seu lugar". Não há homem justo que não sinta sobre si o peso de fazer o lance final, o lance que lhe garanta, mesmo morto, a pedra eterna. "As boas histórias só acontecem a quem as sabe contar. "
.: Publicado por lgm @ 9/13/2003 - 0 Comentário(s)
O navio (II)

"Estes belos e grandes navios, imperceptivelmente balouçados (bamboleados) sobre as àguas calmas, estes robustos navios, com aspecto ocioso e nostálgico, não nos parecem perguntar.
- Quando partimos para a felicidade?"
"Algures no final da Idade Média, esquecendo as doutrinas de Aristóteles sobre a exclusividade do facto de o motor imóvel estar voltado para si próprio também se fez fé num Deus espectador do mundo. Como se Ele tivesse interrompido a sua eternidade só para isso, tendo-se todas as criaturas tornado larvas e máscaras" - os tamagotchis d'Ele - "num jogo do divino que as deixou crescer um pouco."
Bem se sabe que é mentira! Deus não tem vontade nem ver. A vida interna de um espirito não admite a existência de um Espectador Soberano, apenas de visitas ocasionais e longínquas. A ideia de que a parte de dentro de um homem pode ser vista de cima e julgada é a armadilha panóptica das religiões que assim sustentam a sua própria omnipotência. Foi assim que se fundou o desastre da vigilância absoluta. Não havendo deus somos abandonados às forças, às nossas e às dos outros. Podia ser bem pior.
Mas então com que pode contar um homem, já pálido, no meio de um naufrágio, longe de todos os cálculos? Ao princípio hesita-se. Experimenta-se a perplexidade, substância cinzenta que resulta da mistura de tudo o que está no mundo. A perplexidade é o único processo químico capaz de tornar inesgotáveis pedaços de tempo e de espaço.
A perplexidade antecipa o algoritmo do mundo, a explicação órfica da terra. Percebendo num vislumbre que há instantes simples que quase revelam tudo, o náufrago desenvolve uma esperança. Mas a verdade foge sempre. E é exacatamente essa a estaca em que os melhores homens se aguentam vivos. São os que sabendo da morte decidem viver por acreditar no lance definitivo que tudo salve. A partir do momento em que se aceita a única e fatal certeza embarca-se numa aventura que implica não chamar as coisas pelos nomes para não as assustar.
E o náufrago berra: azul escuro, ainda existo. Do lado de lá é tudo negro e silêncio. O simulacro que venderam ao desgraçado, o canto que lhe fizeram dos supra-mecanismos do mundo, não demonstra agora capacidade de resposta para os obstáculos da realidade física.
"Desde Laplace que o molecularismo estava na expectativa de que a micro-estrutura da matéria se iria revelar como repetição da macro-estrutura do universo. Era a suposição económica de que o sistema solar representava o princípio arquitectónico mais simples de todos os sistemas físicos. Deste modo, a aplicação de um processo idêntico no sub-mundo do definitivamente invisível parecia ser a realização de um princípio cósmico único. Tão naturalmente como a natureza seria a natural metáfora de tudo."Como se o entendimento que temos do invisivilmente pequeno nos pudesse, por projecção, esclarecer sobre o infinitamente grande.

"Por último, há que recordar historicamente a metáfora do fluxo do tempo que encontrou em Francis Bacon a sua aplicação destrutiva contra a assumpção de que a verdade seria filha do Tempo. Ora o tempo deixa que a corrente traga à nossa margem apenas aquilo que foi suficientemente leve para não se afundar no rio. É a evidência metafórica da tradição perante a carga da verdade."
Como eu gostaria de ver acontecer um grande naufrágio que lançasse para aí, ao pé de nós, um bom número de pessoas, porque então nós poderiamos contemplar à vontade as suas figuras extraordinárias. Não há nenhuma razão para que a inteligência não possa estar mais bem representada noutros sítios do que na Terra. Podia até ser que esses deuses extraterrestres fossem suficientemente hábeis para navegar até à superfície exterior do nosso ar e daí contemplar-nos por curiosidade ou pescar-nos como peixes... Porque eu só quero ter o prazer de ver aqueles que nos pescam. "
O barco possível é o que se constroi já a caminho. É a pequena ou grande estrutura que, na vida como no mar, se pode destruir de um dia para o outro para logo a seguir se reinventar dotada de virtudes excepcionais.
.: Publicado por lgm @ 9/13/2003 - 0 Comentário(s)
A queda (I)

"Eu que acreditava ter reconhecido aqui o lugar em que poderia viver para o resto da minha vida sem proporcionar ao destino a menor superfície de ataque. Mas o porto não é alternativa ao naufrágio, é o sítio onde se perde toda a felicidade da vida." "Tout est dangereux ici-bas, et tout est necessaire."

O círculo que nos envolve é sempre e cada vez mais pequeno. Nos primeiros momentos de desgraça, quando um vestígio do punho condenado ainda se crispa à superfície, o náufrago consegue vislumbrar a luz do céu, até a da lua. Mas o horizonte estreita-se sempre.
O céu e o mar juntam-se. É tudo mescla, magma e sombra. O navio do náufrago não existe, talvez nunca tenha existido e seja tão ilusório como a rocha que os náufragos julgam ver antes da morte. Todas as rochas desaparecem na espuma.
O náufrago está fora da cumplicidade entre estrelas e marinheiros. Outrora empunhara um leme, agora nada. Tudo é aceleração constante; abismo; derrapagem; vertigem de suspensão e negro. Um náufrago é uma coisa a ficar preta. A salvação não se mostra.
O infinito troça com o olhar escasso dos homens. É preciso mais, usar já o que se tem à mão. Reconhecer alguma coisa. E o olhar estrelado do universo acha divertida esta luta patética e põe na boca de um homem que não há solução porque não há problema. Está tudo tragicamente bem. Uma desgraça é a pequena variação, o choque mínimo necessário a que tudo fique na mesma. O pó dos dias transforma as tragédias em efemérides, meras estacas. O veludo azul encolhe-se de ternura pela pequenez do homem que vai morrer e sabe disso.
"Lucrécio remetia o naufrágio imediatamente para o nascimento da pessoa humana. Assim, a natureza lançaria a criança para a orla da luz (in lumini orgas) do mesmo modo que o nauta é atirado para a terra pelas vagas enfurecidas. No início da vida e não apenas no seu decorrer e fim." Daí o desespero e os banhos de imersão. Há necessidade e não há necessidade. Tudo se culpa e desculpa. E o naufrago pensa:
- Não posso continuar, não quero continuar, vou continuar.
.: Publicado por lgm @ 9/13/2003 - 0 Comentário(s)
12 de setembro de 2003
Eternuridade
eternuridade, s.f. (do lat. aeternitate por aglutinação com do lat. ternu). Qualidade efémera do que é terno.|| O que há de eterno no transitório.|| Afecto muito longo; tristeza suave e demorada.||
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CAIXA NEGRA
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