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eternuridade
Eternuridade, s.f. (do lat. aeternitate por aglutinação com do lat. ternu). Qualidade efémera do que é terno. O que há de eterno no transitório. Afecto muito longo; tristeza suave e demorada. textos e fotos: gouveiamonteiro(at)gmail(dot)com LIGAÇÕES
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26 de abril de 2008
Do inferno ao informe

Informe – Um dicionário começaria a partir do momento em que não fornecesse o sentido das palavras, mas as suas tarefas. Assim, informe não é apenas um adjectivo com um determinado sentido, mas antes um termo que serve para desclassificar, uma vez que geralmente se exige que cada coisa tenha a sua forma. Aquilo que designa não tem quaisquer direitos dentro de nenhum sentido possível e faz-se esmagar por todo o lado, como um aranhiço ou um verme. Seria de facto necessário, para que os homens da academia estivessem satisfeitos, que o universo tomasse uma forma. A filosofia inteira não tem outro objectivo: dar uma sobrecasaca àquilo que existe: uma sobrecasaca matemática. Pelo contrário, afirmar que o universo não se parece com nada e não é senão informe é o mesmo que dizer que o universo é qualquer coisa como um aranhiço ou um escarro. G. Bataille

Todas as coisas belas se parecem umas com as outras, todas as coisas feias são feias à sua própria maneira. A beleza é uma abstracção. Ser feio, pelo contrário, é uma coisa muito concreta.
No século XIX, por ordem expressa de Hegel, o real é conceptualizado. O mundo é recoberto com uma sobrecasaca de racionalidade. O pensamento humano chegava finalmente ao fim da linha: estava tudo pensado. Tudo o que existia envergava agora um uniforme conceptual, nunca menos do que um pequeno véu histórico, capaz de manter a estabilidade de tudo o que ia aparecendo: cada coisa no seu lugar, sem misturas ou equívocos, sempre com bom aspecto. Todas as excepções e particularidades estavam finalmente quietas debaixo da régua do filósofo. Não havia vida no particular, tudo estava encaixado no grande plano do geral.
A história do conceito tinha assim acabado de fazer as bainhas ao platonismo. Tinha sido necessário actualizar (superando) a ideia de que existe um corpo e uma alma (distintos e opostos). Nessa garantia assentava, desde a Grécia Antiga, a convicção de que todos os fenómenos estavam obedientemente agrupados em pares de opostos: o belo e o feio, o bem e o mal, o justo e o injusto, o homem e o animal, o senhor e o escravo. Hegel resolveu o assunto com as sínteses e as tríades: o mundo já não andava aos pares, como na Grécia, andava aos trios, e para cada par de opostos estava em curso uma síntese redentora.
Com a modernidade, a ambição metafísica de submeter o real a um código de etiqueta - a uma matemática - começa a apresentar brechas e infiltrações. Na arte, as imagens do grotesco habituaram-se a conquistar, pelo menos desde Dante, dimensão e protagonismo. Estavam cada vez maiores, ameaçando a imagem - cada vez mais pequena - do santo isolado e cercado no centro da tela.
Já em 1799 os caprichos modernos de Goya desmontavam os falhanços da razão. Mostravam como os equívocos e as distracções da razão alimentam monstros científicos e positivistas. A segunda guerra mundial havia de encerrar este assunto, de tão claro que estava.
Desde logo se podia concluir que a razão, que depois de Hegel já deveria ter chegado ao fim, continuava a produzir. Neste caso a produzir monstros. O espírito contava que o novo vestuário metafísico, de corte idealista, tivesse sido capaz de continuar a esconder as vergonhas do real, já que Roma continuava a gastar rapidamente os poderes mágicos do latim. O espírito, que ao longo da história já se tinha materializando na natureza para depois se desmaterializar outra vez - pensado e resolvido - na cabeça de Hegel, o derradeiro filósofo - continuava em trabalhos.
Com Holderlin e Schelling, o idealismo alemão tinha assumido a tarefa de criar uma nova mitologia em que razão e estética tivessem absoluta coincidência. Essa nova iconografia serviria agora para defender a humanidade do real, esgotada que estava a teologia medieval. A nova mitologia deveria ser capaz de substituir rapidamente a utopia reguladora de Deus, que Kant já tinha usado para escorar a coesão social do Iluminismo. Eram horas extraordinárias que a metafísica pedia à moribunda ideia da redenção divina. Kant tinha pedido a Deus para fazer um encore.
Mesmo com a separação entre razão e Igreja promovida pelo Iluminismo, Kant ainda admitia que só Ele e só a sua ideia podiam - por enquanto – continuar a garantir o stock de energia humanas para manter a civilização a funcionar. Como se vê, logo na investida iluminista se começou a desenhar o receio de um deslaçamento pós-teológico, que haveria de se concretizar, cem anos depois, com a modernidade. Ainda hoje, o grande argumento do Vaticano contra a secularização é precisamente o perigo do deslaçamento relativista.
O terramoto que se seguiu ao idealismo alemão foi Nietzsche, que remando contra a maré diplomática do idealismo, despe a farpela humanista e fala directamente às forças primitivas que continuam à solta, mais ou menos subterrâneas, completamente alheias à razão. Não havia transição possível, era necessário implodir definitivamente o império icónico medieval e com ele toda a tradição socrática de estudar as coisas pondo-as umas contras as outras. Era preciso distinguir sem opor, ir para além do bem e do mal, coisas que afinal não existiam senão para nos manter sossegados.
Com estas guerras, em menos de meio século, tinham-se dado como terminadas a História, a Filosofia e a Arte. Mas as coisas continuavam a acontecer, o fim revelava-se um processo demorado, bastante burocrático. Como se não bastasse, o próprio Deus acabaria por morrer logo a seguir, num caso de contornos pouco claros em que resulta acusado um conluio de artistas, escritores, filósofos e pessoas pobres. A natureza ter-lhe-ia seguindo o caminho, e acabado, se não fossem os terramotos e as catástrofes, sempre eloquentes quando é necessário fazer prova de que afinal o mundo não se deixa governar.
Ao arrepio de todas as proclamações e teorias gerais sobre o mundo, o homem ainda estava longe de operar a grande máquina. O painel de controlo do grande motor imóvel, de Aristóteles, continuava por descobrir. A grande máquina tectónica, com as suas tragédias, demorava escondida no meio da terra e da carne. A morte continuava à solta.
O triste espectáculo dos deuses em fuga - banidos pelas igrejas vazias com missas faladas e em vernáculo - foi a última imagem pintada pela arte estética, a herdeira da arte teológica medieval da qual se havia apenas semi-emancipado. A estética tinha firmado créditos com a instituição da ideia de génio e a assumpção de que o próprio indivíduo teria dentro de si a transcendência e não estava dependente da mediação teológica para entrar em contacto com o absoluto.
A estética era o sonho de medir a beleza e de lhe confiscar os mistérios numa alquimia da transcendência. O problema é que este manual idealista do belo era demasiado auto-destrutivo. Tornara-se obsoleto no próprio dia em que foi publicado, já que anunciava a morte da disciplina. A estética idealista tinha a alegria de alguém que preparava o seu próprio funeral. No dia em que a arte chega oficialmente ao fim, o génio fica com o emprego em risco. A Arte-depois-da-Arte é apenas política. O feio, o grotesco, o abjecto - que até então eram apenas uma etapa do belo - são exorbitados ao ponto de adquirirem plena autonomia. Estamos no longo luto da representação e dos cânones. O informe é notícia.
As movimentações tectónicas provocadas pelo Iluminismo (e pelo terramoto de Lisboa, como demonstra Voltaire) constroem um mundo com aspecto de fim do mundo: feito em placas, com pedaços de terra que se elevam dezenas de metros, com o céu em estilhaços e um chão que se rompe. Entre as ruínas, caminham as feridas e os destroços das certezas de antes. Essa fragmentação inspirou a ideia de uma pós-modernidade, mas não é mais do que o ainda-sempre-tumultuoso cenário da modernidade, tão perto que estamos das ideias e dos medos século XIX. O inferno, que tinha servido para manter a humanidade no lugar, estava a ser invadido pela fantasmagoria plástica e pagã do informe.




O conforme


“Perante o temor da natureza, o homem tenta parar o tempo. A resposta é o conceito”
Carl Einstein




Entre Platão e Hegel a arte teve um papel bem definido: o que belo é e belo perdura. A introdução de “O Retrato de Dorian Gray”(1891), de Oscar Wilde, resume o programa da arte pré-moderna, fundada na estética: “ O artista é o criador de coisas belas (...) Aqueles que encontram significados feios em coisas belas são corruptos sem serem encantadores, o que é uma falha (...) Nenhum artista tem simpatias éticas. Uma simpatia ética num artista é um imperdoável maneirismo do estilo.” Neste meio-tempo entre a arte puramente teológica e a arte moderna, o artista teve como únicas tarefas a autenticidade (fidelidade à sua transcendência interior) e a originalidade (a capacidade de acrescentar alguma coisa à história da arte).
Contudo, antes ainda deste manifesto estético de Wilde, começaram a desenhar-se as tendências da arte moderna. O avanço do grotesco sobre o monopólio do belo é evidente logo em “Nossa Senhora de Paris” (1831) ou em “Os Miseráveis” (1862) de Victor Hugo. Muito antes, ainda, nos alvores do século XIV, Dante – “o supremo poeta” - fazia um catálogo do grotesco ao longo dos nove círculos do inferno. Oficialmente, estas primeiras formas do grotesco aparecem justificadas, aos olhos da Inquisição, apenas como o retrato dos vencidos, como a “segunda metade da arte” que existe apenas na medida em que é derrotada pela santidade e pelo belo. Mas a verdade é que esse sempre foi o ardil retórico que se usou contra os censores. Foi com esse mesmo argumento que o Marquês de Sade justificou a sua obra: como um vigoroso alerta contra os escabrosos resultados de um eventual não cumprimento dos mandamentos divinos.
Em Anna Karénina (1877), que também é anterior ao Retrato de Dorian Gray (1891), Tolstói apresenta já muitas das principais tendências e temáticas da arte moderna, cujos pressupostos fundadores permanecem inalterados. Todas as personagens do livro vivem como que encarceradas no particular. Habituam um mundo onde todas as teorias gerais se tornaram estupidamente individuais e cada um está encarregue de se governar espiritualmente com as ideias que restam. Sem Deus nem cânones, os protagonistas são indivíduos em queda sem garantia de redenção que não seja terrena. O absurdo domina a “sociedade” russa do século XIX, com a certeza de estar a viver os últimos dias dos privilégios absolutistas, mas destruída por dentro pela boémia e pela dúvida.
Os protagonistas procuram em todo o lado sinais, sentido. Desesperam por religações que substituam os carcomidos laços da teologia e da sociedade medieval. Com excepção das personagens mais velhas, ainda assentes em chão mais firme, todos apresentam uma nova necessidade de produzir o sentido para a vida à medida que a vão vivendo, como órfãos. Há um défice de sentido que obriga a procurar uma nova justiça, um novo e melhor algoritmo para o mundo.
Lévin, Anna Vronsky e Kiti, como os outros, procuram na terra, na felicidade, no dinheiro, na arte, na carne e nos prazeres mundanos. Procuram no campo e procuram na cidade. Procuram o deserto e só encontram areia, procuram o absoluto e só lhes aparecem coisas. Esse apetite espiritual é ilustrado, a meio do romance, com o surgimento de um médium/xamã que uma velha princesa importa da América Latina para lhe garantir o fornecimento diário de absoluto e cujas prédicas oraculares passam a governar aquele círculo social.
Lévin – o alter-ego de Tolstói – procura a transcendência na agricultura e na justiça das relações sociais com a família e os trabalhadores. Acaba, à imagem do autor, a construir uma religião unipessoal, algures entre o cristianismo, o socialismo, a propriedade privada e o interesse pessoal . Anna Karénina, literalmente em queda, é apanhada pelo intervalo entre a fuga dos deuses e os seus últimos castigos. Acaba morta e desfigurada como um deus grego. Ela, que fora a mais bela das mulheres, a que tinha melhor aspecto, não resistiu à volúpia nem teve o sangue frio de Bovary para perder o pé sem perder a graça.
O texto de Tolstói (recentemente classificado por autores contemporâneos como o melhor romance alguma vez escrito ) testemunha precocemente a procura moderna de um novo ethos capaz de voltar a ganhar o combate contra a violência do real, de superar a sensação de tábua rasa imposta pelo relativismo moderno e pela necessidade de reconstruir uma barreira de ideias entre o indivíduo e a brutal inflexibilidade da realidade física.
O mundo de Karénina é, como o nosso, moderno e tectónico: bizarro, imprevisível, contraditório, absurdo e injusto. O real torna-se contingente e efeméro. Quando os deuses fogem e a História acaba, a humanidade cai no real. A eternidade é muito mais difícil de sentir quando se vive no aqui e no agora. O tempo torna-se um problema, transforma-se em dinheiro. É como se a marcha do tempo deixasse de ser puxada pelo futuro para passar a ser empurrada pelo passado. O tempo passa a ter tracção atrás, como explica Calasso. O movimento punk resumiu essa ideia ao decretar a inexistência do futuro.
O mesmo passa a valer para a arte, que passa a trabalhar sobre a sua própria história, à qual nada acrescenta. A collage e o cut-up são agora as técnicas, por excelência. O cut e o paste são as novas ferramentas do escritor que, como Benjamim, deseja escrever um livro todo feito com as palavras dos outros, com citações. Nas artes, que deixaram de ser belas e passaram a ser plásticas, a caricatura é o novo grande género.
O novo mundo que nasce no século XIX caracteriza-se precisamente pela crise do particular: há um desacordo entre o todo e a parte. Como um grande nariz, numa caricatura que cresce ainda mais, desmesuradamente ameaçando tomar conta do resto do corpo. É esse o grande ponto de partida do caricatural e do cómico: a parte expande-se descontroladamente, quer ser maior do que o todo.
A modernidade é esse movimento em que as mesmas causas começam a desenhar diferentes consequências e em que se rompe o antigo pacto platónico entre forma e matéria. O novo paradigma é o plástico, uma espécie de prostituição da matéria que - contra todas as indicações da metafísica – aceita não uma, mas todas as formas. Esfumavam-se diariamente, nas cidades industriais cujas chaminés substituíram os antigos campanários, todas as certezas do mundo. Todas as divisões entre sólidos e líquidos, entre o que é humano e o que é natural, entre o que é do domínio do corpo e do domínio da alma, tudo o que era sólido no imaginário da civilização, tudo esfumou no ar. Misturaram-se os reinos, as categorias e os géneros, deixaram de existir ideias puras e a ciência teve a humildade de reconhecer que o conhecimento é uma cebola impossível de descascar por inteiro.
O informe é aquilo que é do domínio do viscoso, cujas fronteiras são instáveis e, por isso, ameaçadoras. Ou, como enuncia Dennis Hollier, “O informe é a irrepresentável monstruosidade do todo”. Quando a humanidade se começou a ver do espaço, no trânsito dos carros, por exemplo, percebeu que se comporta da mesma forma que um rio, que as multidões se comportam como líquidos. Nas ruas, das grandes cidades, como máquinas, o indivíduo confunde-se com massa, instrumento do progresso, em direcção ao trabalho: a horas certas, ao mesmo ritmo e na mesma direcção.
A moeda de troca desta nova economia do indivíduo mergulhado nas massas passa a ser – como na linguagem das flores descodificada por Bataille – o aspecto. A atenção torna-se o bem mais escasso pelo que o aspecto constitui a maior arma. Tudo o que anda no mundo presida de uma linha imaginária que divida entre as misérias íntimas da carne e as suas alegrias externas. O informe não é senão a existência dessa linha estável, que impeça a almas das coisas de saltarem da matéria para fora.
Os novos ícones de beleza passam também para a tutela do paradigma do plástico, a matéria indecisa que aceita todas as formas. É uma ideia que se mete dentro da própria pele. Uma mulher bela é agora uma Barbie: com um corpo incorruptível feito de 100% silicone.


O disforme


“Na História, como na Natureza, a decadência é o laboratório da vida”
Karl Marx




Longe dos antigos cálculos da ciência e da religião e ainda sem um novo porto firme, a modernidade é o reino da vertigem. Tudo ficou mais veloz, uma sucessão de imagens e de choques, fluxo ininterrupto de informação. O real transformou-se no efémero rosto de uma mulher que passa do outro lado da montra e que – como lamenta o poema de Baudelaire – não voltaremos a ver. O real foge e perde-se no meio da multidão das cidades.
As novas máquinas separaram os sons e as imagens dos objectos, multiplicaram-nos e deixaram-nos à solta no mundo. A mesma razão que prevê para todos os homens a morte certa, alimenta-lhes o sonho de uma vida técnica, eterna e puramente espiritual. Pois se até a voz, até o puro sopro de um homem já pode ser reproduzido por máquinas, não poderá a carne - a metade perecível do homem - tornar-se obsoleta? Paradoxalmente, as mesmas luzes que secularizam o conhecimento também serviram para o encandear. O naufrágio da modernidade reside nesta encruzilhada: a ciência avançou o suficiente para desmontar as categorias platónicas, mas ainda está demasiado atrasada para conseguir novas explicações para os grandes mistérios da consciência e da vida.
Sucessores modernos dos fantasmas e dos espectros, os homens-máquina inventados no século XIX, sublimam as novas angústias da humanidade. Muitas das nossas avós já são, de facto, cyborgs (pessoas ficcionais ou hipotéticas cujas capacidades físicas foram estendidas para além das normais limitações humanas pela introdução de elementos mecânicos dentro do seu corpo. Curiosamente, são as mesmas avós que continuam a viver noutro tempo histórico, pré-moderno. O teletransporte e o extropismo são os sonhos felizes do informe. Frankenstein, a criatura informe, é o seu pesadelo. Num e noutros casos, o combate entre as possibilidades da técnica e os segredos da criação da vida, ilustram o psiquismo moderno, as suas ambições e os seus medos.
Os espelhos a cópula deixaram de ser os únicos instrumentos para aumentar a humanidade. Até o limite dos corpos - a fronteira anteriormente intransponível entre o corpo individual e o exterior, a separação entre o cidadão e a massa - se torna equívoca. No meio deste vórtice – em que tudo conspira, tudo chama por nós e pede a nossa atenção, em que tudo quer ser a causa das nossas elevações e das nossas quedas – o olho humano é chamado a novas tarefas. A realidade acelerou e a verdade abandonou as imagens. Ou seja, como um náufrago, à procura de solução rápida para cada problema. Os horizontes encheram-se de chaminés das fábricas que substituíram os campanários das igrejas.
Em total oposição aos estetas, Bataille e a etnografia do início do século XX
declaram que o belo não passa de uma monstruosidade estatística, é apenas um acidente, uma riqueza pontual que existiu à margem e às custas do que é miserável, sujo e comum. O belo sempre viveu à margem das maiorias, do que é “verdadeiramente” humano. Assim, o “novo belo” de Bataille é agora o resultado aritmético de um mínimo denominador comum entre todas as ocorrências particulares. Um rosto belo resultaria da soma de todos os rostos, distinguir-se-ia pela sua total “normalidade” e ausência de especificidade. O “antigo belo”, esse, seria apenas um acidente de percurso, algo bizarro cuja opulência é pouco interessante, talvez até um pouco insultuosa para as coisas cá de baixo, normais e de todos os dias.
À etnografia da revista Documents interessa o que é comum e banal, até o informe, muito especialmente o informe. Epítome do “novo belo” em Bataille, o dedo grande do pé é coroado como o mais humano dos órgãos, por ser simultaneamente o mais rasteiro e o mais elevado. Pode ser o órgão mais sujo, mais perto da lama, mas é também aquele cuja evolução permitiu a um primata descer das árvores e aguentar-se de pé. A metáfora serve de resumo à ideia moderna de que o alto e baixo são apenas extremos de um círculo e que, por isso, inexoravelmente se tocam.
Não existe, na modernidade, uma diferença estável entre alta e baixa cultura. Esse é um dos postulados principais e um dos alicerces mais sólidos da arte moderna. É daqui que partem os navios expressionistas, surrealistas, dadaístas, existencialistas, abjeccionistas, simbolistas, modernistas e pós-modernistas. O vento que levam nas velas já não é o da divindade nem o da razão. Usam, na maior parte do tempo, um pequeno motor de fora de borda, que construíram para si com os restos que encontraram na oficina. Sempre que podem, aproveitam os ventos que fazem.
A história da arte tinha tentado fazer do museu um lugar higiénico, mas, no início do século XX, começavam a dar às costas do Ocidente uma série de objectos bizarros que ameaçavam as paredes brancas da cultura. Chegava arte primitiva, apareciam peças abstractas, até urinóis. Depois veio o lixo, o próprio lixo. Ainda hoje curadores e comissários enfrentam com embaraço as questões levantadas há cem anos quando, por exemplo, se perguntam como conservar a trash art. Ainda não está respondida a pergunta: Será possível uma arte sem estética?
Como em todas as situações de crise, a geometria dos círculos levou-nos a voltar ao início à procura de soluções. No primitivo, procurou-se o regresso à dimensão cúltica e ritual da obra de arte. Para além das suas qualidades formais estes novos objectos parecem carregar uma ligação directa ao inconsciente, uma magia infantil que resume, na arte, o projecto de Picasso e das suas legiões, no século XX. A infância é uma das novas religiões modernas, tal como o inconsciente e o sonho. Foi nestes territórios que a humanidade procurou consolo.
A arte, que andou sempre por perto da religião, com quadros na paredes das igrejas e santos nas telas dos museus – identifica rapidamente esta ruptura do stock espiritual, e conquista bastante território. As figuras do sacerdote, do xamã e do feiticeiro, quando deixadas vagas, são rapidamente ocupadas. Têm à espera rebanhos de indivíduos modernos, com a doença das possibilidades, a viver no particular com crises e compulsão e falta de vontade.
Os diferentes rostos da modernidade (pós-modernidade, modernidade tardia e anti-modernidade) são os paraísos artificiais que ocupam os vazios deixados pela religião e, logo a seguir, pelo positivismo. As teorias do absurdo, com a substituição da linha do real por uma linha de utopia (ou de distopia, conforme a inclinação dos autores) monopolizaram a economia da transcendência. Foram a bola de ténis invisível no final de Blow up de Antonioni. Os novos padres continuam a operar na fronteira entre o visível e o invisível. Como Cristos, continuam sujeitos aos rituais do martírio e da crucificação.


O informe


“A tarefa da modernidade é esquecer”
Stéphane Mallarmé



No ano de 1816 não houve Verão. A chuva entrou pelo mês de Agosto e mergulhou o mundo num Inverno vulcânico provocado pela erupção de vulcão Tambora, na Indonésia, no ano anterior. A movimentação das placas tirou a vida a quase 100 mil pessoas, cobriu a Europa de cinzas e aboliu o Verão seguinte. As aguarelas de Turner testemunharam esse espectáculo crepuscular do “ano sem verão.
De visita a Lord Byron, na Suíça, a jovem Mary Godwin e o seu amante Percy Shelley – com quem viria a casar-se – vêem-se confinados ao interior da Villa Diodati, nas margens do lago Léman, por causa do mau tempo. Passam o tempo a falar sobre interesses comuns: os avanços da ciência e o sobrenatural. A leitura de Fantasmagoriana , uma antologia alemã de histórias de fantasmas, inspira-os a fazer um concurso: cada um escreveria uma história, a mais assustadora seria a vencedora.
Byron escreve uma história de vampiros, inspirado naquilo ouvira nos Balcãs e escreve um texto que haveria de alimentar a instauração de um género. Mary demora mais tempo a resolver o problema, até que cai naquilo que é descrito como uma espécie de sono-acordado ou de pesadelo e tem a visão de um estudante de artes proibidas ajoelhando-se perante a sua monstruosa criação. Estavam lançadas as fundações do que viriam a ser “Franskenstein ou o Moderno Prometeu” (1818) de Mary Shelley e “Vampiros” (1819) de Lord Byron. Instalava-se um psiquismo moderno obcecado com o gótico, o invisível e o híbrido.
No intervalo de cultura aberto pelas movimentações tectónicas dos séculos XVII e XIX - no vazio de Tolstói (e de Cervantes, o primeiro romancista moderno da alucinação) - emergem os habitantes gelatinosos das brechas do real. São do domínio do viscoso, do que não é nem líquido nem sólido, não tem contornos nem dimensões, que não é nem uma coisa nem outra. Estão entre a vida e a morte, entre o homem e a máquina, entre este mundo e o outro. São informes.
A Filosofia tem – e usa – o privilégio de chegar ao real com algumas décadas de atraso. A marcação ao actual, a ligação àquilo que emerge, é feita pelo resto do mundo e pelos artistas. São eles que andam no terreno, farejam e servem de cobaias à vida e ao tempos. Anos mais tarde começarão a ser estudados nas academias.
Com a Revolução Industrial, instalou-se nas várias artes e muito especialmente nas letras uma sensibilidade intuitiva e dormente, uma nova devoção pelo inconsciente e invisível. Falava-se de um certo mal-estar. A sensação seria imposta pelos recalcamentos do processo civilizacional, como explicaram Freud e Lévi-Strauss, que fizeram os diagnósticos, mas não puderam adiantar curas.
O desassossego, o unheimlich e o ennui tomam conta do pensamento e da poesia. A sociedade refugia-se em criptas, cabalas e misticismos. Já no século XX, as guerras mundiais contribuem para essa tristeza que emudece e desmontam a ilusão de que a marcha do pensamento vivo seria uma rua de sentido único em constantes teses, antíteses e sínteses. As coisas ficaram muito absurdas. Muitos homens perderam alguma da confiança que tinham naquilo que viam, nos próprios olhos.
As razões que têm vindo a ser enunciadas contribuem para a ideia de que estas novas criaturas e estados de espírito da modernidade não aparecem por acaso. Aparecem porque a ciência cresceu o suficiente para desmontar a religião, mas muito pouco para a tornar desnecessária. No processo, o real ficou descarnado, tectónico e com falhas suficientemente grandes para engolirem um homem adulto.
Ao mesmo tempo, uma revolução óptica deslocou as atenções para o invisível, multiplicando as extensões do olho humano e consumando as fragilidades da nossa percepção e dos nossos limites cognitivos. De repente tudo eram apenas palavras e coisas. Caída a ligação teológica que impedia o mundo de se deslaçar novamente em barbárie, as novas ligações (o belo, a felicidade, o amor..) são agora mais frágeis.
O real vinha adquirindo, nas cinzas de Platão, de Hegel e do vulcão Tambora, uma estrutura cinemática. Deixava de ser possível controlar o rodopio das imagens, que adquirem propriedades auto-poéticas, multiplicam-se como plantas. A humanidade estava a deixar de se relacionar directamente com a natureza para se dedicar quase exclusivamente a re-trabalhar aquilo que já havia sido trabalhado.
A fotografia e o cinema não só acabam com a necessidade da representação do real como são até o resultado e a exigência de uma alteração prévia que ocorria já no próprio tecido do real e na retina. Como se tivesse sido já o novo regime de visualidade a reivindicar invenções que o acompanhasse e que desse resposta às novas necessidades que tinha criado. Eram precisos meios de comunicação que fizessem aparecer o invisível. Baudelaire exigia vidros coloridos, a transparência já tinha tido os seus dias.
Com as imagens à solta, a percepção está sujeita a uma rotina alucinatória que pressupõe a impossibilidade e a inutilidade de olhar directamente para o real. A atenção desloca-se do que é positivo e mensurável para tudo o que foge e não se deixa conhecer. No cinema não interessa o frame, interessa o filme: as imagens em movimento e o movimento das imagens, algo que se constrói no espaço entre os frames e que é imaterial.
A economia da atenção e do susto, que os fantásticos e os simbolistas começaram a construir no século XVIII, ainda é a que governa o mundo no início do século XXI. São, no fundo, as ideias de Poe , Baudelaire e Mallarmé, segundo as quais toda a obra de arte necessita de um leito metafísico escondido, sobre o qual assentam os seus aspectos materiais (as personagens e o enredo, por exemplo..). Essa competência metafísica e conceptual funda a arte moderna. Institui-se na ideia de que a transcendência se produz nos intervalos da matéria. Esse intervalo é, no cinema, o corte-móvel de Deleuze; na poesia, as correspondências de Baudelaire; na pintura, as relações interiores de Kandinsky; na música, com em tudo, o silêncio.
Depois de Deus e de Nietzsche, Marcel Duchamps (eleito por um público de artistas, em 2007, como o nome mais influente da arte no século século XX ) assumiu uma espécie de papado, lugar de sumo-sacerdote da transcendência. Pintor que não pinta, escritor ágrafo e, no fundo, apenas “um rapaz de café”, instaurou duas ideias: a de que “não há solução porque não há problema” – ou seja, por enquanto nada de novo se pode conhecer, a ciência está em crise de crescimento, só nos pode alimentar de dúvidas – e a ideia de que o artista é apenas aquele que nomeia, que assina um conceito, o que implica mais uma competência metafísica do que um virtuosismo técnico. Salvador Dali financiou os últimos anos da sua existência a assinar folhas em branco, expediente que gerou uma pequena indústria, bastante lucrativa. Era apenas o começo do culto moderno do autógrafo com a sacralização não só do artista, mas da sua simples notoriedade pública, que lhe confere o estatuto de semi-deus.
A proposta moderna trabalha assim na procura de resposta à auto-insuficiência imposta pelo vazio teológico. A questão passa a ser como produzir uma nova transcendência pagã capaz de satisfazer as crescentes necessidades de consolo da humanidade que agora se apresenta com uma espécie de “pobre menina rica” a quem tudo o que sabe e tudo o que tem não traz senão amargura e desgosto, alguém que sonha com um regresso a uma tranquila ignorância e à alienação.
Neste campo as propostas para a produção do espanto - dos “Paraísos Artificiais” - são variadas em muitos casos muito anteriores à modernidade. Aristóteles garante que se lá chega pela catarse, a experiência libertadora que permite uma superação espiritual. Na Idade Média imperou a noção de que a elevação é possível alcança pela via da austeridade e do ascetismo. Nietzsche detecta, a este propósito, mecanismos pouco cristãos, mas bastante católicos, que implicam a construção de um dispositivo sacrificial.
Stirner, na senda das sagradas escatologias (Sade, Bataille, Klossowsky e, por cá, César Monteiro e Pacheco), estabelece que é a instituição de um fantasma que produz o milagre, na medida em que o sagrado precisa de um interdito - da blasfémia e do sacrilégio - para se tornar visível . Isto é, é preciso desmistificar para melhor mistificar logo a seguir. São respostas diferentes para a mesma ambição alquímica: tirar o universal do particular, o eterno do transitório, fazer com que o todo se torne maior do que as partes.
As descobertas científicas que se fizeram desde 1700 sobre a percepção (e as que não se fizeram sobre a consciência) deram um novo sentido à alegoria da caverna de Platão. Agora, a caverna é a nossa metade perecível e carnal, a carcaça que nos aloja o espírito e onde nos chegam - pelos sentidos – as imagens de uma estranha dança de fumo e de espelhos.
A promessa tácita (mas inconfessável e incumprida) da modernidade é a saída dessa caverna solitária e dramaticamente individual. O drama moderno, se tivermos de resumir tudo a uma frase, consiste em descobrir alternativas sérias (capitalismo, comunismo, consumismo e afins) à caducada promessa da imortalidade da alma. A Idade Média foi uma altura difícil, mas as pessoas sabiam que depois do martírio vinha o céu, era mais fácil. Ainda é com base nessa promessa que grande parte do mundo vai trabalhar de manhã.
A importância destas alterações no “psiquismo geral”, no “inconsciente colectivo” ou no “espírito do tempo” não são apenas temáticas artísticas ou académicas. A importância histórica destas tendências está não só na base das sucessivas arquitecturas legais encontradas pelos povos, mas, acima de tudo, é plasmada nos modos como a humanidade organiza a gestão das energias e dos recursos disponíveis. É aquilo que faz (ou não) levantar as pessoas de manhã, é o que lhes justifica existências sacrificiais.
A ligação das novas artes à procura da transcendência é particularmente visível no cinema, bastião moderno na comunicação do informe, da nova magia técnica que, ao longo dos últimos séculos, encheu o mundo de sonhos e desejos. Como a arte contemporânea, o cinema não quer representar coisa nenhuma, “procura maximizar o mistério da existência; descarta todas as interpretações convencionais da realidade: realismo, naturalismo, psicologismo, romanticismo, expressionismo, impressionismo e, finalmente, racionalismo. (..) O estilo transcendental aproxima-nos do silêncio, da imagem invisível na qual as duas linhas paralelas da religião e da arte se encontram e interpenetram” . Na modernidade, tanto na precoce como na tardia, tudo o que se dá a ver oculta algo mais importante e complexo, uma caixa-negra. É o conflito perpétuo entre o desejo de tudo ver e as limitações da memória. A Sistémica foi inventada quando as ciências evoluíram o suficiente para ver tudo o que ainda lhes faltava fazer.
Se a Arte tivesse mesmo acabado não estaríamos tão obcecados com a ideia de que há um artista à espera dentro de cada um de nós, pronto para reconfigurar o mundo. A necessidade universal de criar corresponde apenas à ancestral necessidade humana de se elevar a uma consciência, a um objecto em que o indivíduo possa reconhecer os seus traços. Se a História tivesse mesmo chegado ao fim as crianças estariam todas a dormir. Está fechado o círculo, é aqui que dançaremos.
.: Publicado por lgm @ 4/26/2008 - 1 Comentário(s)
10 de abril de 2008
Hoje estou todo vestido com os materiais do futuro.
.: Publicado por lgm @ 4/10/2008 - 0 Comentário(s)
8 de abril de 2008
Já fomos avisados, vamos até ao fim.
.: Publicado por lgm @ 4/08/2008 - 0 Comentário(s)
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