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eternuridade
Eternuridade, s.f. (do lat. aeternitate por aglutinação com do lat. ternu). Qualidade efémera do que é terno. O que há de eterno no transitório. Afecto muito longo; tristeza suave e demorada. textos e fotos: gouveiamonteiro(at)gmail(dot)com LIGAÇÕES
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18 de novembro de 2006
Rapid Eye Movement
Sonhos e Visões de Hollywood num passeio por Mulholland Drive com um desvio por Sunset Boulevard e uma passagem em Rumble Fish



Sunset Boulevard em Mulholland Drive de David Lynch


«A beleza mais não é do que o começo do terror»
Rainer Maria Rilke


Sonhos e visões: psiquismos
Uma respiração ofegante. Um movimento de câmara por uma textura avermelhada, rugosa. Depois os lençóis. A coisa rugosa era uma carpete no chão. Um cobertor castanho com uma bainha amarela sedosa. Depois uma almofada encarnada e o abismo. A respiração ofegante, no estado particular do sono em que a actividade neuronal é semelhante à de quando se está acordado. É nesta fase do sono que ocorre a maior parte dos sonhos. Este primeiro plano é a chave azul de Mulholland Drive.
Dentro do ciclo “Sonhos e Visões”, David Lynch indica-nos em que ponto está o cinema na tentativa de representar a visão e, ainda mais especificamente, o sonho. E mostra-nos em que grau de desenvolvimento está o nosso olhar de espectador, onde estão os limites da nossa relação sensorial e intelectual com o medium. O mesmo aconteceu com Coppola em Rumble Fish. São dois filmes que nos dão o estado das coisas, que representam touchpoints no desenvolvimento do cinema. São confrontos com o que era, até à data, impossível de dizer. Para justificar estas afirmações e confirmar a profunda novidade de “Mulholland Drive” basta recordar a recepção que o filme teve junto do público e da crítica. Sem meias tintas, as opiniões dividiram-se entre o puro deleite e a rejeição liminar. Dois exemplos:
“Desculpem-me lá o conservadorismo, mas gosto que os livros, os filmes, as histórias façam sentido, mesmo que esse sentido surja da desarrumação, da arbitrariedade, da aparente irracionalidade. O problema com «Mulholland Drive», um primo direito de «Twin Peaks» , é que faz descaradamente questão de não ter sentido nenhum, de ser muito, muito menos do que a soma aparente das suas partes, embora a modalidade de «escrita automática» cinematográfica de David Lynch seja inegavelmente cativante e distribua quilos e quilos de milho aos pardais da «ambiguidade» e outros execráveis conceitozinhos parecidos.
Acontece que Lynch é um tóxicodependente da sua «weirdness», um perito em caça aos gambozinos, um viciado no absurdo cubista, auto-referencial, e a desembocar em beco sem saída, um virtuoso do efeito «pescadinha-de-rabo-na-boca», que já começa a fatigar por abuso de processos e repetição «ad nauseam» de temas, ambientes, figuras, sensações, fantasmagorias, atmosferas visuais, sonoras e «trips» sensorais. Ao ponto do final de «Mulholland Drive» roçar o ridículo. (E isto é tanto mais exasperante porque até certa altura, o filme parece querer ser «perceptível», ter nexo... e depois toda a gente descobre que afinal está aprisionada numa realização de David Lynch... maldito pós-modernismo, que não há quem lhe dê o tiro de misericórdia na nuca!)”
(…)
“Há dois géneros de filmes de David Lynch. Os que têm uma história que se pode contar e são sobre alguma coisa, e os que não têm história nenhuma e são sobre o que se passa no mais recôndito da cabeça de David Lynch, inacessível ao resto do mundo. À primeira família de filmes pertencem, por exemplo, «O Homem-Elefante», «Duna» ou «Uma História Simples». Na segunda família, encontramos «Eraserhead» ou «Estrada Perdida».
«Mulholland Drive» junta as duas famílias. Tem uma história que se pode contar e é sobre alguma coisa até certa altura – duas raparigas, uma loira ingénua recém-chegada da província que quer ser actriz, e outra morena e sabidona que perdeu a memória, investigam um estranho caso de recorte policial em Los Angeles. A partir de certa altura, «Mulholland Drive» perde a história que estava a contar e passa a ser sobre o mais recôndito da cabeça de David Lynch. «Mulholland Drive» é parte legível, parte inacessível. É o primeiro filme bivalve de David Lynch.”
Eurico de Barros, “Diário de Notícias”
(texto disponível em http://www.cinema2000.pt)
Este primeiro exemplo de agressiva rejeição é um representante fiel das muitas vozes que se levantaram contra Lynch em 2001/2002. A argumentação deixa a sensação de que Eurico de Barros viu o filme uma vez menos do que deveria. Ou, como diz Manoel de Oliveira, “antigamente as pessoas diziam que não tinham percebido o filme, agora dizem que o filme não se percebe”.
Vejamos um novo exemplo, mas de sentido contrário em que, devidamente identificadas as pistas do filme, este objecto estranhamente novo provoca reacções apaixonadas:
“É o último sonho de uma pretendente a estrela (a loura Betty/Diane), é a sua hipótese de entrar num último filme (na sua cabeça). Onde idealiza o amor que nunca lhe foi retribuído (pela morena Rita/Camilla), onde se dá o papel de detective num caso policial, de anjo salvador e até de objecto de desejo de um realizador. Tudo isto para salvar a pureza de um amor que nunca existiu. A realidade, na Cidade dos Anjos (e dos Sonhos), é um pesadelo. Este, "Mulholland Drive", filmado por David Lynch, pode muito bem ser a versão de uma morta (como William Holden fazia de narrador em "Sunset Boulaverd"/ "O Crepúsculo dos Deuses").
Parecendo que não, até é dos mais narrativos filmes do cineasta (a história "está toda lá", sobretudo o desejo de a contar). É dos mais viciantes, a ver e rever, como um interminável "loop". Dos mais carnais, também (com uma pulsão "camp"). E dos mais destroçados. A última hora, liberta do carrocel de bizarrias que ainda sobra no filme como marca do episódio piloto para série de TV (o projecto original de "Mulholland Drive"), é das coisas mais tristes, que se filmaram, sobre o trauma e a perda.”
Vasco Câmara, Jornal Público
(texto disponível em http://www.cinema2000.pt)
Vasco Câmara prossegue com um enquadramento do universo simbólico de Mulholland:
“É um caminho e também uma auto-estrada, corre de leste para oeste e do seu ponto mais alto avista-se de um lado toda a cidade, Los Angeles, e do outro, o San Fernando Valley. “Em pé, lá em cima, podemo-nos sentir Deus — ou o Diabo”, diz o ensaísta e crítico David Thomson em “Beneath Mulholland — thoughts on Hollywood and its ghosts” [Alfred A. Knopf, 1997], uma colectânea de textos desvairados que abanam aos ventos indefinidos da fantasia e da crónica jornalística, que ele publicou, entre 1980 e 1996, em revistas como a Movieline, a Vanity Fair, a Film Comment ou American Film.
Sigamos com ele, então, por Mulholland Drive. Um aviso, primeiro: as estradas vão, habitualmente, de A a B, mas Mulholland “tem mais a ver com estar lá em cima do que com qualquer destino” — tem mais a ver com estatelar-se por ali abaixo. Diz a lenda que quem vai de A a B (de Cahuenga ao Oceano Pacífico, hora e meia a guiar) ou é aventureiro ou é suicida.
Thompson imagina Mulholland como o corpo de Marilyn Monroe, deitada de lado, meio enterrada numa crista de pedra — as montanhas de Santa Monica. Do tornozelo, avista-se o Hollywood Bowl; virando à esquerda, as letras HOLLYWOOD (olhando para baixo, os arranha-céus da Baixa de L.A.).
“À medida que as pernas dão lugar às coxas entramos no pedaço mais rico de Mulholland, cheia de sistemas de segurança para casas escondidas, de aparelhos de rega a sibilar para as buganvílias e para as rosas.” É aqui que vivem Jack Nicholson, Marlon Brando e os outros (mas foi também aqui que entrou Charles Manson e os membros da sua seita). É a fronteira. Poucos se atrevem a ir para além daqui.
“Mas há mais para descobrir”: uma espécie de resquício de oeste selvagem, uma estrada poeirenta, de violentas contracurvas. “É um lugar de paranóia”, de amores furtivos e droga, carros misteriosamente estacionados (deve ser aí que as chapas dos automóveis se rasgam, no início do filme de David Lynch).
Quando se pensa que é o fim, “começamos a subir pelo peito, pelos ombros e pela garganta” de Marilyn, o campo novamente habitado, por solitários e excêntricos. Depois é o mar, o Pacífico, nas ondas da cabeleira platinada de Marilyn.
Se chegou até aí, se sobreviveu à noite de Mulholland, então é porque escapou. Porque “por baixo de Mulholland há corpos enterrados”— é um poema de Nabokov, que Thompson cita —, histórias que não foram vividas. É a “twilight zone”. Thompson, como Lynch, prefere as vítimas, os cadáveres; prefere serpentear por Mulholland apanhando na cara com os destroços humanos (ou esta versão: Hollywood como uma bomba que explodiu, que ocorreu há muitos, muitos anos, mas que continua a libertar resíduos tóxicos que excitam as nossas fantasias). “Beneath Mulholland — thoughts on Hollywood and its ghosts” é o livro de um fascinado por meias-vidas e fantasmas, pela luz que treme no ecrã, pela imagem que hesita e se desvanece. É “a doença” de quem ficou agarrado às salas escuras, e isso está para além da cura. Não se morre disso, diz Thompson; “mas isso não significa que nós, os doentes, e toda a nossa cultura, não estejamos deformados.””
Dito isto, estamos situados: Los Angeles, mais precisamente Hollywood, cuja personagem é representada por uma rua com o nome de “Mulholland Drive”. E aqui chegados percebemos que pelo menos num ponto os dois críticos dizem a mesma coisa, ainda que de maneiras diferentes. O primeiro, mais céptico, diz que o filme mostra “o que se passa no mais recôndito da cabeça de David Lynch”. Como demonstra o segundo, é exactamente isso que Lynch pretende fazer: mostrar o mais recôndito da sua cabeça, mas também das mentes de Hollywood, de Los Angeles e, no fundo, de toda uma cultura alimentada a celulóide e videoclips. A grande proeza do filme é precisamente a de conseguir representar coisas novas, a de filmar estados mentais. É essa a sua dificuldade e também a sua grande conquista.
Pegue-se, por exemplo, na referência de Vasco Câmara a “Sunset Boulevard”, de Billy Wilder (1950), título que também integra este ciclo: no filme dos anos 50 temos a a história de uma actriz que perdeu o pé na passagem do mudo para o sonoro e que, à medida que envelhece, deixa de poder competir com a beleza que já teve. Em 2001 temos uma aspirante a actriz cuja realidade é incompatível com a dimensão dos seus desejos e sonhos. Betty/Diane é o protótipo do náufrago em terra, daquele que se estatelou sem chegar sequer ao topo. Assim, a mulher representada por Naomi Watts representa-nos a todos. É o quadro mental de uma geração que está a ser filmado, não apenas o das (velhas) glórias de Hollywood, nem sequer o do restrito mundo do “star-system” norte-americano. Lynch (que várias vezes durante a promoção do filme pediu para o verem com mais atenção, garantindo que “a história estava toda lá”) é esclarecedor:
“Los Angeles parece ao visitante, ao longe, uma coisa homogéna, mas não é. São muitos moods, muitas coisas. Estes diferentes ambientes podem alimentar um filme (..). A luz de Los Angeles foi o que levou as pessoas para ali. A luz e o bom-tempo; uma sensação de que aqui tudo é possível. É crítico sentir-se essa luz. (…) Em LA há uma certa criatividade no ar, diz-se aqui que toda a gente já escreveu um guião. Toda a gente tem uma fotografia para apresentar e está disposta a arruinar-se por uma oportunidade de se expressar.”
Se, nos anos 50, Billy Wilder retrata uma região muito específica dos efeitos da comunicação de massas - aquilo que o sistema faz às suas estrelas -, Lynch mostra como essa “doença” de que fala David Thomson já não se circunscreve a Bel Air e a Beverly Hills, é a mente e o filme da vida de milhões de pessoas. É o retrato de uma geração que chega ao novo século entre os vinte e os trinta anos e tem por única ambição ser arty, “expressar-se”. Viver à altura do que sonhou para si. No primeiro caso mostra-se o medium na idade em que aprendeu a falar, no segundo o momento em que, como diz Serge Daney, o cinema e a televisão, como todos os casais que estão juntos há muitos anos, “começam a ficar parecidos”.


O mal-estar no cinema
Basta recordar “O mal-estar na civilização” e “Uncanny”, de Freud, para enquadrar a temática do unheimlich que marca o tom do psiquismo de Lynch. Trata-se de pensar como a civilização impõe estruturas psíquicas ao indivíduo; como a era da técnica nos encheu primeiro de esperança e depois de medo; primeiro de amor e desejo e depois de trauma e de perda. É assim que funciona a cabeça de uma estrela (carente ou decadente, é igual) e foi exactamente isso que se filmou. É, no fundo, um filme que se passa dentro da cabeça de uma pessoa. Se já Freud falava do assunto, não defendo aqui que a sintomatologia trágica tratada por estes filmes seja uma descoberta de Wilder e Lynch, pelo contrário. O que se passa é que, dentro do cinema, foram os primeiros a perceber como filmar esses sintomas. O mesmo acontece com Coppola, em Rumble Fish, outro dos filmes deste ciclo. Se usarmos a divisão de Tarkovski entre os realizadores - que pretendem imitar o mundo o melhor possível - e os “poetas” - que pretendem criar outro mundo na tela- podemos dizer que nestes três casos a distinção é curta: – estes filmes tanto retratam o mundo como o aumentam.
Ainda as ligações entre “Mulholland Drive” e “Sunset Boulevard”. há duas referências textuais a Sunset Boulevard no filme de Lynch. Logo no início, quando a seguir ao acidente, cambaleia monte abaixo até que reconhece a tabuleta de Sunset Bl. Outra na cafetaria em que Diane contrata o assassino, que fica em Sunset Boulevard. Na placa com o nome da empregada que os atende (a que Diana rouba o seu nome onírico - Betty) aparece também, depois do nome da cafetaria, Sunset Boulevard.
Outra relação óbvia: os dois filmes são nomes de ruas. No primeiro caso é a alameda mais famosa de Los Angeles, o centro possível de uma cidade sem centro, feita de arredores e de pequenos mundos com muros e piscinas. Mulholland é, nas palavras de Lynch (em entrevista para o making of do filme), “uma estrada fora do tempo, uma estrada de sonho.” É o sítio onde nada está à vista, onde tudo é possível e todo o possível é desejado. Mulholland e Sunset são dois dos eixos centrais dos “mapas das estrelas” que se vendem nas ruas de Los Angeles para que o visitante possa fazer um sight-seeing pelos portões de entrada das casas das grandes vedetas do mundo do espectáculo. Mas as estrelas propriamente ditas nunca lá estão, só se lá chega por “atalhos secretos”.
De facto, uma das impressões mais fortes de Los Angeles é a de uma cidade que acontece em segredo e que não existe enquanto espaço público. É um aglomerado tão interminável quanto impenetrável (a não ser para os happy few da “Meca do cinema”, para as “Camillas”). É o sítio onde "se procura o absoluto, mas só se encontram coisas". Ou, como diz Betty, “estou em Hollywood e ainda não vi nada”.
Assim, os dois filmes são dois retratos de Hollywood com 50 anos de intervalo. São representações de um Real falido, sinais de que aquilo com que se sonha não existe de facto. Carregam a ideia de que a realidade soçobrou face ao imaginário em que se projecta. E, mais grave, que o mundo do sonho se infiltrou definitivamente na vigília. A este propósito, leia-se Slavoj Zizek em Organs without bodies (Routledge, 2004, pp 167-170, tradução minha):
“Mulholland Drive de David Lynch retrata na perfeição esta gradual desintegração {da fantasia}. Os dois estádios principais desta desintegração são, primeiro, a actuação excessivamente intensa na cena do teste, e, depois, quando o objecto parcial autónomo (“orgão sem corpo”) emerge na cena do nightclub Silêncio. Aqui, o movimento vai do excesso, que está ainda contido na realidade apesar de já a começar a pertubar, saindo para fora dela, para a sua completa autonomização, que causa a desintegração da realidade ela própria; digamos, da distorção patológica de uma boca para a boca a sair do corpo e a fluturar como um objecto espectral parcial(…). Este excesso é aquilo a que Lacan chama lamella, o objecto infinitamente plástico que se consegue transpor de um medium para outro: do excessivo (trans-semântico) grito para a mancha (ou distorção visual anamórfica). Não é isso que se passa no grito de Munch? O grito é na verdade silencioso, um osso entalado na garganta, uma paragem que não pode ser vocalizada e que se pode expressar apenas sob a forma de uma distorção visual silenciosa, curvando o espaço em redor do sujeito que grita.
Em Silencio, onde Betty e Rita vão depois de terem feito amor com sucesso, uma cantora canta em espanhol Crying, de Roy Orbison. Quando a cantora colapsa a música continua. Neste ponto é também a fantasia que colapsa – não no sentido em que “a bruma dissipa-se e estamos de volta à sobria realidade”, mas antes no sentido em que, de dentro, tal como era, a fantasia perde a sua ancoragem na realidade e autonomiza-se, como pura aparição espectral de uma voz “não-morta” sem corpo.(…) Este real, claro está, é o Real fantasmático mais puro. E, para o colocar em termos deleuzianos, não será esta “autonomização” do objecto parcial o momento preciso de extracção do virtual partindo do actual? O estatuto de “orgão sem corpo” é o do virtual – noutras palavras, na oposição entre o virtual e o actual, o Real lacaniano está do lado do virtual. (…) O crucial é que, durante um breve instante, parte da realidade foi (mal)entendida como uma aparição assombrosa – e, de uma certa maneira, esta aparição é “mais do que a própria realidade”, na medida em que, dentro dela, brilhou o Real. Resumindo, é conveniente distinguir que parte da realidade foi “transfuncionalizada” através da fantasia, para que, apesar de ser parte da realidade, seja percepcionada de uma maneira ficcional. Muito mais difícil do que denunciar/desmascarar (aquilo que aparece como) a realidade enquanto ficção é identificar na realidade “real” a parte de ficção. Não é isto que acontece na transferência, durante a qual, enquanto nos relacionamos com a pessoa que temos defronte, efectivamnete nos relacionamos com a ficção, por exemplo, do nosso pai?”
A análise de Zizek ajuda a perceber como se produz esse ponto de encontro entre o real e o imaginário. (Não serão essas as instâncias que estão retratadas no clip inicial do filme com a vitória de Diane no concurso de dança, através de uma sequência de camadas sobrepostas que se "inter-recortam" para mostrar o estado mental em que a protagonista é entregue à cidade?)
Em termos mais genéricos, o método usado em Mulholand Drive, Sunset Boulevard e Rumble Fish tem uma semelhança central: ao fazerem retratos de "espaços mentais" e ao contrário do que mandam as regras de Hollywood, nem tudo está entregue às personagens: a mansão decadente de Norma Desmond, a cidade pós-industrial do Motorcicle Boy e a estrada metafísica de Betty e Rita, todas são personagem. É como se a própria lente fosse a personagem principal na medida em que determina as relações entre as coisas e lhes confere uma afectação inexorável. Ou seja, numa relação entre duas coisas o elemento central está sempre ausente porque é o terceiro elemento, é quem estabelece a relação entre as duas coisas, as junta e apresenta. Esse terceiro elemento é o olho. Estamos então face a três exemlos de cinema em que não há apenas actores, mas em que o espaço e o tempo são elementos centrais.
O golpe que Lynch dá na história do cinema diz respeito à maneira como usa as suas convenções e, mais precisamente, os seus raccords para induzir o erro e a ambiguidade. Por exemplo na cena em que, depois da separação, Diana é atormentada por visões/recordações: o jogo de raccords de posição e de movimento e o uso do contra-campo são feitos“by the book”. Mas fazem supor que a cena tem uma linearidade temporal, o que não acontece. Ou seja, aquela gramática diz aos nossos olhos que as coisas estão a acontecer cronologicamente. O filme diz ao nosso intelecto que não é nada disso que se está a passar. Lynch explica:
“É muito interessante ter uma coisa que nos faça pensar noutra coisa. É um artifício no qual gostaria de me voltar a fazer cair. É interessante porque nos pôe a cabeça a pensar de uma maneira diferente”
Resumindo, com cerca de 20/30 anos de intervalo entre cada um, os três filmes são procuras do zeitgeist do mundo e do cinema. São tentativas bem-sucedidas de romper com as maneiras tradicionais de contar histórias, nomeadamente com o método de fazer depender dos actores a produção da transcedência. São experiências de imersão em regimes mentais em que as personagens perdem dimensão. As personagens estão esmagadas pelo tempo e pelo espaço - pela impossibilidade de deixarem de ser elas próprias. Umas querem ser o que já foram, outras querem ser quem têm à volta. “Vamos fingir que somos outras pessoas, fazer como nos filmes”, diz Betty a Rita. Não podem.
Nesse trabalho de retratar estados mentais é essencial o papel desempenhado pela banda sonora. Houve um investimento muito superior ao habitual na criação de paisagens sonoras que dialogam com as imagens e com o texto servindo para os “situar" emocionalmete. Badalamenti chama a atenção para o facto de os filmes de Lynch terem muito silêncio, longos trechos sem diálogo. O que lhe é pedido, sublinha o autor da banda sonora, é bastante mais do que música. Refere mesmo a maneira como o cineasta lhe faz as encomendas, antes ainda do início da rodagem e de forma metafórica, descrevendo atmosferas e ambiências em vez de dar referências cénicas ou narrativas. Já na montagem muitos destes sons seccionados, atrasados ou aceleradas para criar o efeito pretendido (Lynch assina, na ficha técnica, a composição de "trechos adccionais" da banda sonora)
O jeito “metafórico” que Lynch tem de dirigir é também referida por Laura Elena Harring. No making of do filme, conta que para a cena do acidente de automóvel, o realizador lhe pediu apenas para sair do carro como uma “boneca partida”. Tanto o trabalho com os actores como a manipulação do som e da luz (e a montagem) são decisivos para a construção do unheimlich que referi no início do texto. Concorrem para a noção de que o cinema e a televisão não nasceram para dizer as coisas, mas sim para as mostrar e para, sempre que possível, fazer sentir. E, nos três filmes em apreço, implicam a noção de que a realidade se tornou metafórica, se despositivou.
O unheimlich é aquilo que nos assombra porque é, ao mesmo tempo, estranho e familiar; é aquilo que deveria ter permanecido íntimo e foi tornado visível; é o que deveria ter ficado no segredo dos deuses e foi posto à disposição dos mortais; é aquele instante em que a realidade nos aparece como um fantasma. Esse assombro (causado pelos nós lógicos que as maravilhas da técnica dá nas nossas pobres cabeças) começou com o espanto de Narciso ao espelho, passou pelo gramofone quando, pela primeira vez, um homem ouviu uma máquina a falar (e percebeu que havia coisas “não-mortas”, como diz Zizek). Esse assombro, nas diferentes formas que tem assumido ao longo dos anos, é outra das grandes personagens de Sunset Boulevard, Rumble Fish e Mulholland Drive.

Cinema e televisão: tropismos
Em 2005, o realizador Michael Cimino esteve na cinemateca de Lisboa. Em conversa com cineastas e estudantes de cinema, chamou a atenção para um pormenor: durante as filmagens, os realizadores contemporâneos assistem às filmagens através de um minúsculo monitor. Isto quando, diz o realizador de Heaven’s Gate, a cena está “toda lá”, à frente deles, à frente câmara. Como se estivessem a fazer apenas televisão, algo para ser visto pequeno. É curioso constatar, nas imagens da rodagem e no making of do filme, que a descrição de Cimino aplica-se a Lynch. Durante a gravação, ele está, de facto, a olhar para o pequeno monitor (o que não quer dizer que não tenha marcado e preparado a cena antes). O alerta de Cimino é extremamente pedagógico e expõe uma espécie de "tique" industrial por oposição a uma cena que exista de facto e não seja apenas simulada.
A este propósito pode invocar-se também a sequência final de Sunset Boulevard, em que Erich Von Stroheim, no papel de si próprio. O realizador grava a descida de Norma Desmond, mas está ao lado da câmara (e não atrás dela). Pode ainda lembrar-se outro dos filmes deste ciclo, Vai & Vem, de João César Monteiro. Neste caso leva-se ao limite a noção de que a cena se produz em frente à câmara, a cena é uma performance. Em César, a fotografia não tem discurso, a fotografia mostra. Neste caso estamos mais perto do teatro e mais longe da televisão. A ideia de que o cinema é feito em frente à câmara está tão levada ao limite que o filme - feito para ser visto depois da morte do realizador - assume uma forma mediúnica. Uma obra feita do lado de lá da câmara e da vida. Julgo que o cinema de Lynch ajuda a resolver o dilema de Cimino, na medida em que mostra que não há um determinismo irresolúvel do medium que o condicione a um tipo único de discurso. A maneira que cada medium, nas suas infinitas cambiantes, tem de se adaptar ao meio não o condena ou salva à partida. Prova disso é a variedade das propostas apresentadas neste ciclo.
Não serve esta argumentação para contrariar o facto de a ligação de Lynch com a televisão ser muito forte. (Defende é que não pode ser vista como uma profanação.) Os créditos que o realizador tem internacionalmente começaram pela TV, com Twin Peaks - outra grande experiência ao nível dos limites cognitivos do espectador. Mulholland Drive começou por ser um episódio piloto para uma série da ABC. Foi recusado. Depois pensou-se em transformar a ideia numa mini-série. Depois de meses de interrupções e indefinições, fez-se o filme. A primeira parte está ainda muito marcada por este processo de avanços e recuos, como refere Vasco Câmara. O realizador esclarece: “um piloto tem muitas aberturas, mas poucas saídas, esse é o truque”. O dois primeiros terços do filme foram filmados primeiro, são as tais “aberturas”. O terço final, que resolve a narrativa, foi filmado posteriormente para concluir a rodagem e transformar a ideia num filme. A primeira hora e meia está ainda carregada desses pequenos fogachos, despojos do episódio piloto.
Mary Sweeney, a montadora (e também produtora) do filme explica o método usam pós-produzir os filmes: fazem um orimeira montagem de tudo o que foi filmado, com cerca de 5 horas. Depois começam a lapidar e vão eliminando pedações, mudando de lugar. Esta noção de montagem não-linear, mais orgânica e muito menos pré-determinada é também uma metodologia que se afasta as regras do cinema clássico. No caso de Mulholland a primeira montagem tinha quatro horas e meia. Ficou com 151 minutos.
A confusão entre o cinema e a televisão está na génese do filme tanto quanto está na sua linguagem. Mas o produto final sobrevive às duas provas, aos dois media resulta em sala, mas também "funciona" em pequenos formatos. (É particularmente lúdico em versão home-cinema, com a hipótese de voltar atrás). A verdade é que a esmagadora maioria da produção de Hollywood já se financia e destina mais ao pequeno ecrã do que à exibição em sala.
Outra maneira ainda de olhar para este casal: e se, com o andar da carruagem, o equilíbrio de forças entre marido e mulher se tiver alterado? Nos anos 50 o cinema era bastante autoritário, comandava as operações. Em 2001 não dá sequer para comparar com o tempo de antena conquistado pela esposa. Vai-se ao cinema de vez em quando, a televisão está lá todos os dias. A visualidade contemporânea, para usar o conceito de Benjamim, depende mais dela do que dele, ainda que seja ao cinema que se pede o grande espectáculo, a invenção. Vistas as coisas assim Mulholand Drive é um daqueles dias em que o casal trabalhou bem em equipa.
Mas esta reflexão sobre os media não fica completa se nos ativermos à ideia de que apenas a televisão e o cinema desempenham aqui um papel. Já foi referido o modo como Lynch (à semelhança de Wilder e Coppola) se dedica especialmente à criação de espaços mentais. Essa experiência sensorial não é senão o programa da instalação e da arte contemporânea em geral: mais do que elaborar um discurso, trata-se de produzir o espanto e uma sensação de imersão (abismar). Fora do espaço e fora do tempo. Ouçamos Lynch uma última vez:
"Neste filme o conceito de amnésia liga-se com o de acting: o actor abdica de quem é e transforma-se noutra pessoa. Toda a gente, eu incluído, se quer perder, encontrar-se num mundo novo. O cinema dá essa oportunidade, de nos perdermos completamente num outro novo mundo."
Esta última pista de Lynch faz-nos regressar à ideia inicial: fronteira mágica entre a realidade e a ficção; o sono e a vigília. O primeiro momento em que o chão nos foge dos pés em Mulholand é quando, por momentos, julgamos ouvir Betty a espantar-se com Rita pelo facto de ainda não se ter ido embora da casa onde estão: "o que é que ainda está aqui a fazer, os meus pais estão lá em cima." Por instantes, fazem-nos crer que Betty está mesmo a discutir com Rita. A questão de Rita poder ou não estar naquela casa está em cima da mesa. Ela está lá encondida. O mistério é resolvido quando abre o plano e aparecem as folhas de papel nas mãos das actrizes: estão apenas a passar texto. Pouco depois, na cena do casting, a mise en abyme continua: Naomi Watts representa que está a representar. A cena, notável, é uma espécie de Las Meninas do cinema.
O abismo é tal que, a dada altura, nos damos conta de estar a ver o filme do filme que está a ser feito. As suas interrupções e indefinições, o casting, a rodagem e, principalmente, os bastidores e as mentes daquela gente. Na cena central, no nightclub Silencio, a produção do abismo está cuidadosamente preparada: por um lado os insistentes avisos do apresentador: "no hay banda". O filme mostra exactamente o contrário: "hay banda". Entra o trompete que, afinal, não toca. O filme está-se a negar-se a si próprio. É como o jogador de uma equipa adversária que nos faz duas vezes a mesma finta e nos engana sempre da mesma maneira. Lynch faz aquilo que está proibido entre os ilusionistas: revela o truque. Está a fazer cinema e a desmontar o cinema ao mesmo tempo. Logo a seguir ao trompete entra em palco Rebekah Del Rio. Dá duas tapinhas no micro e o som ouve-se: parece que funciona. A cena é particularmente longa, a música vai quase até ao fim. Nada denuncia o playback, mas ela desmaia. Terceira finta: a música continua. A loura parece que morre no fim.
Commentários:
Meu lindo. Tenho saudades tuas. E as saudades quando são sentidas têm que ser partilhadas. Qualquer dia destes vou fazer-te uma visita. Beijinho grande, maior que grande, enorme! Cati.
.: Comentado por Blogger Cor-de-Rosa : 7:01 da tarde  
Amiguinho
Ainda não li este texto como ele merece mas uma rápida olhadela em diagonal foi suficiente para perceber que gosto muito. Na realidade, o meu cinema preferido é este, que olha para além dos limites convencinais da racionalidade e da percepção. Lynch remete esses mecanismos para terrenos oníricos que tu analisas como eu não seria capaz de fazer, apesar de fã incondicional de longa data. Ainda bem que voltaste prá escola. Vou guardar este texto, que parece ter as coisas que eu gostava de dizer sobre o David Lynch.
Já agora, sem querer abusar, não te apetece publicar qualquer coisa sobre o Cronenberg? É outro cineasta que ultrapassa os limites convencionais da percepção, ainda que se desloque mais para os terrenos da alienação que do onírico, explorando a forma como as suas personagens perdem o controle sobre as suas decisões e comportamentos, seja através da metamorfose em mosca, da vertigem da velocidade e do choque dos corpos brutos, das substâncias psicotrópicas ou dos RPG's. Como no cinema de Lynch, os elementos sensoriais e o desejo ajudam a ultrapassar essa fronteira dos limites da racionalidade e remetem para os universos que vale a pena viver.
Também te agradeço, naturalmente, o texto sobre o João César, essa criatura que encenou e filmou o seu próprio universo onírico e alienado. Em boa hora esse blog deixou de ser um balde de punhetas!
.: Comentado por Anonymous Anónimo : 6:10 da tarde  
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