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eternuridade
Eternuridade, s.f. (do lat. aeternitate por aglutinação com do lat. ternu). Qualidade efémera do que é terno. O que há de eterno no transitório. Afecto muito longo; tristeza suave e demorada. textos e fotos: gouveiamonteiro(at)gmail(dot)com LIGAÇÕES
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29 de novembro de 2006
Texto sobre um texto que fala de um quadro em que se pinta um quadro
I

O espectador, ligeiramente afastado do quadro, contempla o pintor. Talvez se trate de lhe descobrir a intenção, mas também é possível que navegue ao largo dos segredos que o movem. Com “Las Meninas”, Foucault demonstra a modernidade inaugural de Velázquez. Mostra como uma única tela põe em crise o conceito de imagem. Não é preciso chegar à conclusão do texto para o perceber. Ao longo de várias páginas, o autor é forçado a clarificar várias vezes o objecto do seu discurso: Imagem, qual delas? Quadro, qual quadro? A tela que está no museu do Prado? A tela que essa tela tem dentro e que aparece de costas? Ou as várias telas, sombrias, representadas nas paredes daquilo que se nos apresenta como a oficina do pintor; ele próprio pintado enquanto pinta? Ou seja, “Las Meninas” compõe-se de uma sucessão de nós lógicos que o texto de Foucault procura identificar.
À distância certa, o espectador que se depara com esta obra de Velázquez experimenta um assombro inédito. Não tanto pelo estranho retrato da monarquia espanhola do século XVII, com a frágil menina em cujos ombros repousa o futuro do regime, nem sequer pelas sombrias figuras do seu séquito. Antes pela figura representada do pintor, que nesse instante ignora a cena representada (num olhar suspenso, sobranceiro, fita o modelo que está a representar na grande tela que tem diante de si). Ora esse modelo, objecto do olhar do pintor, está num “ponto invisível, mas que nós, espectadores, podemos determinar facilmente pois esse ponto somos nós mesmos”. Ou seja, a perplexidade reside na incessante convocatória que o Quadro lança ao seu público, puxando-o para dentro da tela, representando-o sem precisar de o fazer. Exigindo um diálogo impossível entre palavras e coisas.
Como demonstra Foucault, consegue algo insólito, ao representar o invisível. “Aceita tantos modelos quantos os espectadores que lhe apareçam”. Neste jogo de espelhos “o espectador e o modelo invertem papéis permanentemente.” Neste exercício de troca, o espectador sente-se não só olhado, mas também representado, ou em vias de o ser, na tela de costas que o pintor recopia. Dessa maneira, está de alguma forma retratado o espaço invisível para onde se dirige o olhar do pintor e da infanta. Não é possível olhar para “Las Meninas” sem querer imaginar o que falta representar daquele atelier. Em meados do século XVII, o pintor desmonta os conceitos de quadro e imagem e obriga o público a pensar em espaços virtuais. E inicia um dos diálogos mais extensos da história da pintura, mas “a relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita”, como refere o autor.
Esta união metafísica entre visível e invisível é selada pela luz. Em “Las Meninas”, um banho de luz é permitido por uma janela da qual apenas se vê a moldura. O espectador, transformado em modelo, deve quase ser capaz de sentir o calor dessa luz. “Percorrendo a sala da direita para a esquerda, a vasta luz dourada impele a um tempo o espectador para o pintor, e o modelo para a tela (…) Esta janela extrema, de que apenas se vê uma parte, projecta uma luz simultaneamente plena e mista que constitui o espaço comum da representação.” É a peça essencial da “armadilha” que nos lança o pintor.
A tradição vê Velázquez “mais preocupado com os mistérios ópticos da luz do que com os metafísicos”. De uma maneira ou de outra é inútil determinar a raiz intelectual da inspiração do pintor espanhol. Nem a arqueologia do Foucault nem nada que se tenha descoberto entretanto consegue entrar dentro da cabeça de um homem. Já morreu, esse segredo, sobre a centelha que fez a pintura dar um salto epistemológico que durou quase duzentos anos: o entendimento de que é “a luz que cria o mundo visível”. Ou de que, pelo menos, o pintor pinta o que bem entender, que a representação não está nem presa ao invisível, como no início, nem ao visível como até então.
Sobre os mistérios do Quadro há teorias para todos os gostos. Das mais cómicas às que se pretendem mais científicas. Defensores da tese segundo a qual a ideia do quadro foi do rei que, num certo dia, enquanto o pintor lhe fazia um retrato, teria dito qualquer coisa como: “Ó Velázquez, isto que eu estou a ver daqui é que dava uma grande pintura”. Os que se deram ao trabalho de identificar e reconstituir a sala do álcacer, incendiado em 1734, para chegar à conclusão óbvia de que a cena, tal como representada, não pode ter existido fisicamente. Os que definem esta pintura como a primeira fotografia da história. Há quem jure que o quadro teve de ser pintado a vários tempos e com recurso a espelhos. Os que recusam a hipótese do espelho e garantem que foi o pintor que foi mudando de sítio à medida das necessidades. É um diálogo sem final possível.
As respostas mais importantes nem o autor, se estivesse vivo, as poderia dar. Não quer isto dizer que tenham resultado do acaso, ou sequer de uma inspiração que o autor ingénuo aproveitou sem entender. Os mistérios borgesianos que levanta e o espanto que “Las Meninas” provoca resultam de perguntas para as quais não há resposta: o tempo e o espaço. Muito pouco nos interessaria se a figura reflectida dos reis fosse apenas um feliz acaso se, por exemplo, o pintor o tivesse acrescentado apenas por reverência comissionada a sua majestade. Isto quando, na verdade, o espelho é um dos grandes centros do Quadro, que nos obriga a imaginar a outra extremidade daquela oficina, a pensar numa coisa que não está representada, que tão pouco existe.
É em grande medida pelo domínio da luz que Velázquez consegue transformar esta sua obra-prima numa “teologia da pintura”, como a classifica o pintor napolitano seu contemporâneo, Luca Giordano. É essa mestria que nos permite distinguir um espelho, várias telas sombrias e, ao fundo – como em mais um quadro dentro do Quadro – um visitante esquivo com luz própria que observa a acção representada. Temos, portanto, um duplo (o pintor), dois fantasmas (os reis) e um espectro (o intruso). São precisamente os temas com que a técnica vai assombrar toda a modernidade.
Tantas semi-presenças juntas permitem o que era, até então, impensável: passar para “o outro lado do espelho”. Esta frase é um dos centros do texto de Foucault. É a tradução mais literal que se consegue dentro do impasse discursivo em que o quadro nos lança. É esse jogo que o pintor representado estabelece com a figura reflectida dos reis ao “conduzir cada uma dessas duas formas da invisibilidade ao lugar da outra, numa sobreposição instável”. Assim, seria possível entender o Quadro como o primeiro making of: “o artista no seu atelier”. Ou, melhor, um making of de um making of, num jogo de espelhos postos em frente um do outro. Um dos espelhos é o pintor, o outro somos nós, os espectadores. Seremos quem?


II


Mais até do que Foucault deseja nomear, todas as personagens que o quadro representa estão perfeitamente identificadas pelo nome próprio graças ao biógrafo oitocentista do pintor, Antonio Palomino. Estão lá os reis Filipe IV e Mariana, a infanta Margarida, as damas de companhia, os anões e os escudeiros. Mas há sempre um abismo entre os nomes e as coisas. O nome próprio “permite passar do espaço em que se fala para o espaço que se olha”, “apontar com dedo”, enquanto a proposta de Foucault é mais radical: permanecer no anonimato e manter o mais aberta possível “a relação da linguagem com o visível” e trabalhar “não contra mas a partir de tal incompatibilidade” para “permanecer no infinito da tarefa”.
Ou seja, o arqueólogo propõe-nos esquecer quem aparece no espelho. Ter apenas em conta que se trata do reflexo da grande tela que aparece representada de costas no Quadro que Velázquez efectivamente pintou e está no museu do Prado, em Madrid. Tal como a janela de onde brota a luz que ilumina o primeiro plano da sala, este espelho “constitui um espaço comum ao quadro e ao que lhe é exterior” e “num movimento violento, instantâneo e de pura surpresa, vai procurar diante do quadro aquilo que é contemplado, mas não visível”.
Ao lado do espelho, o espectro. Um vulto surge numa porta, ao fundo de uma escada. Nem dentro, nem fora, como os modernos. É uma nova tipologia de quadro. Uma das três que podemos descobrir só na parede do fundo. Temos os quadros opacos, pendurados na parede (dois dos quais são cenas da metamorfose de Ovídio atribuídos ao pintor Mazo, genro de Velázquez, com modelos de Rubens); temos o quadro velado e com moldura cuja luz diáfana nos diz ser espelho; e temos agora também o quadro recortado por uma nova luz, “um rectângulo claro cuja luz compacta não irradia pela sala”. São as mudanças na luz com que o pintor retrata cada uma destas representações que permitem distingui-las umas das outras pelas diferenças que exibem. Nem é preciso falar da tela que aparece representada de costas para perceber o quanto este Quadro torna insuficiente a própria ideia de quadro. Ou não fosse, antes de tudo o mais, o “retrato de um retrato” como foi pensado antes das inquietações metafísicas que muito mais tarde começou a levantar.
A “alta silhueta” de um homem, ao fundo, surge, tal como o espelho, como “um emissário desse espaço evidente e oculto”. Mas, ao contrário das figuras no espelho, aparece em “carne e osso (…) não é um reflexo provável, mas uma irrupção.” Existe, por assim dizer, para permitir definitivamente a identificabilidade do espelho, cujo reflexo se cruza com a luz que escorre, da esquerda para a direita, a partir da janela. Essa intercepção define e acolhe o primeiro plano onde se podem contar oito personagens e um cão.
O tema central da composição em primeiro plano é a infanta Margarida: pelo lugar que ocupa, pela forma como é contemplada por outras personagens, ainda pelo pormenor e destaque com que a sua figura e o seu traje são representados. O olhar da princesa, tal como o do pintor, dirige-se para o espectador do Quadro. Cinco das oito personagens, pelo contrário, olham não para fora, mas para dentro do Quadro. “Em cada duas personagens, uma olha para a frente, a outra para a direita ou para a esquerda”. O cão tenta dormir, mas o anão mais pequeno perturba-lhe o lombo com o minúsculo pé.
Foucault encontra, na disposição deste grupo de oito, duas figuras possíveis: um grande x ou uma curva, cujas extremidades superiores são sempre o olhar do pintor e o do cortesão e cujo centro é necessariamente e sempre o olhar directo da infanta. A concavidade da curva, ou o espaço entre os braços superiores do x constituem a linha que “delimita e projecta, no meio do quadro, o espaço reflectido no espelho”. Temos assim os dois centros interiores – o espelho ao fundo, mas em cima, a princesa à frente, mas em baixo. De cada um deles sai uma “linha sagital”. As duas linhas, em ângulo muito agudo, atravessam o Quadro e convergem “aproximadamente no lugar do espectador”.
Mas, no instante em que se dá essa convergência, surge um novo lugar que disputa a centralidade do Quadro, ainda que a partir do seu exterior. É um ponto inacessível, mas que existe. Esse ponto mágico, “lugar do rei”, está no museu do Prado, em frente à tela. Infelizmente, não existe uma barreira física que estabeleça distância justa para contemplar a obra. Não há linha que proteja o ponto e os pobres espectadores que lá chegam ávidos de tirar fotografias com telefones para obter a representação da representação da representação que desejam enviar para os amigos. Por isso, actualmente, o ponto passa as horas de maior expediente a ser pisado. Quando é só dele que se vê todo o espectáculo de pura reciprocidade em que “o rosto que reflecte o espelho é igualmente o que o contempla; o que olham todas as personagens do quadro são também as personagens aos olhos de quem elas próprias se oferecem como uma cena a representar. O quadro, no seu conjunto, vê uma cena para a qual ele é, por seu turno, uma cena”. É o lugar em que todos os olhares convergem: os que existem e os que estão representados. Foi daí que o autor olhou a sua obra enquanto a criava. É nesse ponto que somos Filipe IV e estamos a ser pintados por Velázquez.
Por tudo isto o “centro real da cena” é o espectador e o “lugar do rei é também o do artista e o do espectador” na medida em que o reflexo do espelho atrai “para o interior do quadro aquilo que lhe é intimamente estranho”. (Unheimlich, como é costume entre os espelhos, duplos e espectros). Neste jogo, uma espécie de câmara subjectiva instalada num olhar imaginário, o objecto central da representação não está, não pode estar representado. A técnica utilizada depende disso.
O Quadro estará sempre incompleto na medida em que exige um olhar interlocutor e em que deixa por representar a metade fundamental da cena que retrata. “Na profundidade que atravessa a tela, que abre um espaço fictício e a projecta para a frente de si mesma, não é possível que a pura felicidade da imagem mostre alguma vez em plena luz o mestre que representa e o soberano que é representado. Talvez este quadro de Velázquez figure como a representação da representação clássica e do espaço que ela abre”, termina Foucault para demonstrar que “Las Meninas” marca a libertação da representação face àquilo que a fundou pelo que passa a poder “oferecer-se como pura representação”. Esse “sujeito mesmo – que é o Mesmo – foi elidido” deixando um “lugar vago” que se nos insinua.
Toda a fantasmagoria da técnica, todas as perplexidades que a modernidade desencadeou – com os novos regimes de visualidade que instaura – aparecem aqui, num choque, antecipados pela intuição do pintor: o duplo, o espelho, o espectro. O espanto que o Quadro nos oferece é essencialmente da mesma ordem do que viria a provocar o gramofone ou do que tinham já causado os espelhos entre as comunidades indígenas durante os descobrimentos (mais até do que a pólvora que as subjugou, já que a metafísica dos espelhos é muito superior à do fogo). É o mistério do cinema e de todas as ligações que os olhos não chegam para ver. Esse encantamento remete para a magia da técnica e para a respectiva capacidade de virtualizar e de simular, de reproduzir até o mistério incompreensível da Vida, a sua imagem e semelhança: o seu sopro.
Pouco importa para esta reflexão a intencionalidade do autor. O mistério, indiscutível, permanece intacto desde o momento em que a intuição do pintor o revelou. Tão pouco se pode pôr em dúvida que Velázquez se ausentou do meio de nós na medida em que deixou de existir em 1660. Tanto quanto nos é possível saber e Foucault nos ensinou, “Las Meninas” foi o primeiro quadro que nos pintou.
.: Publicado por lgm @ 11/29/2006 - 1 Comentário(s)
18 de novembro de 2006
Rapid Eye Movement
Sonhos e Visões de Hollywood num passeio por Mulholland Drive com um desvio por Sunset Boulevard e uma passagem em Rumble Fish



Sunset Boulevard em Mulholland Drive de David Lynch


«A beleza mais não é do que o começo do terror»
Rainer Maria Rilke


Sonhos e visões: psiquismos
Uma respiração ofegante. Um movimento de câmara por uma textura avermelhada, rugosa. Depois os lençóis. A coisa rugosa era uma carpete no chão. Um cobertor castanho com uma bainha amarela sedosa. Depois uma almofada encarnada e o abismo. A respiração ofegante, no estado particular do sono em que a actividade neuronal é semelhante à de quando se está acordado. É nesta fase do sono que ocorre a maior parte dos sonhos. Este primeiro plano é a chave azul de Mulholland Drive.
Dentro do ciclo “Sonhos e Visões”, David Lynch indica-nos em que ponto está o cinema na tentativa de representar a visão e, ainda mais especificamente, o sonho. E mostra-nos em que grau de desenvolvimento está o nosso olhar de espectador, onde estão os limites da nossa relação sensorial e intelectual com o medium. O mesmo aconteceu com Coppola em Rumble Fish. São dois filmes que nos dão o estado das coisas, que representam touchpoints no desenvolvimento do cinema. São confrontos com o que era, até à data, impossível de dizer. Para justificar estas afirmações e confirmar a profunda novidade de “Mulholland Drive” basta recordar a recepção que o filme teve junto do público e da crítica. Sem meias tintas, as opiniões dividiram-se entre o puro deleite e a rejeição liminar. Dois exemplos:
“Desculpem-me lá o conservadorismo, mas gosto que os livros, os filmes, as histórias façam sentido, mesmo que esse sentido surja da desarrumação, da arbitrariedade, da aparente irracionalidade. O problema com «Mulholland Drive», um primo direito de «Twin Peaks» , é que faz descaradamente questão de não ter sentido nenhum, de ser muito, muito menos do que a soma aparente das suas partes, embora a modalidade de «escrita automática» cinematográfica de David Lynch seja inegavelmente cativante e distribua quilos e quilos de milho aos pardais da «ambiguidade» e outros execráveis conceitozinhos parecidos.
Acontece que Lynch é um tóxicodependente da sua «weirdness», um perito em caça aos gambozinos, um viciado no absurdo cubista, auto-referencial, e a desembocar em beco sem saída, um virtuoso do efeito «pescadinha-de-rabo-na-boca», que já começa a fatigar por abuso de processos e repetição «ad nauseam» de temas, ambientes, figuras, sensações, fantasmagorias, atmosferas visuais, sonoras e «trips» sensorais. Ao ponto do final de «Mulholland Drive» roçar o ridículo. (E isto é tanto mais exasperante porque até certa altura, o filme parece querer ser «perceptível», ter nexo... e depois toda a gente descobre que afinal está aprisionada numa realização de David Lynch... maldito pós-modernismo, que não há quem lhe dê o tiro de misericórdia na nuca!)”
(…)
“Há dois géneros de filmes de David Lynch. Os que têm uma história que se pode contar e são sobre alguma coisa, e os que não têm história nenhuma e são sobre o que se passa no mais recôndito da cabeça de David Lynch, inacessível ao resto do mundo. À primeira família de filmes pertencem, por exemplo, «O Homem-Elefante», «Duna» ou «Uma História Simples». Na segunda família, encontramos «Eraserhead» ou «Estrada Perdida».
«Mulholland Drive» junta as duas famílias. Tem uma história que se pode contar e é sobre alguma coisa até certa altura – duas raparigas, uma loira ingénua recém-chegada da província que quer ser actriz, e outra morena e sabidona que perdeu a memória, investigam um estranho caso de recorte policial em Los Angeles. A partir de certa altura, «Mulholland Drive» perde a história que estava a contar e passa a ser sobre o mais recôndito da cabeça de David Lynch. «Mulholland Drive» é parte legível, parte inacessível. É o primeiro filme bivalve de David Lynch.”
Eurico de Barros, “Diário de Notícias”
(texto disponível em http://www.cinema2000.pt)
Este primeiro exemplo de agressiva rejeição é um representante fiel das muitas vozes que se levantaram contra Lynch em 2001/2002. A argumentação deixa a sensação de que Eurico de Barros viu o filme uma vez menos do que deveria. Ou, como diz Manoel de Oliveira, “antigamente as pessoas diziam que não tinham percebido o filme, agora dizem que o filme não se percebe”.
Vejamos um novo exemplo, mas de sentido contrário em que, devidamente identificadas as pistas do filme, este objecto estranhamente novo provoca reacções apaixonadas:
“É o último sonho de uma pretendente a estrela (a loura Betty/Diane), é a sua hipótese de entrar num último filme (na sua cabeça). Onde idealiza o amor que nunca lhe foi retribuído (pela morena Rita/Camilla), onde se dá o papel de detective num caso policial, de anjo salvador e até de objecto de desejo de um realizador. Tudo isto para salvar a pureza de um amor que nunca existiu. A realidade, na Cidade dos Anjos (e dos Sonhos), é um pesadelo. Este, "Mulholland Drive", filmado por David Lynch, pode muito bem ser a versão de uma morta (como William Holden fazia de narrador em "Sunset Boulaverd"/ "O Crepúsculo dos Deuses").
Parecendo que não, até é dos mais narrativos filmes do cineasta (a história "está toda lá", sobretudo o desejo de a contar). É dos mais viciantes, a ver e rever, como um interminável "loop". Dos mais carnais, também (com uma pulsão "camp"). E dos mais destroçados. A última hora, liberta do carrocel de bizarrias que ainda sobra no filme como marca do episódio piloto para série de TV (o projecto original de "Mulholland Drive"), é das coisas mais tristes, que se filmaram, sobre o trauma e a perda.”
Vasco Câmara, Jornal Público
(texto disponível em http://www.cinema2000.pt)
Vasco Câmara prossegue com um enquadramento do universo simbólico de Mulholland:
“É um caminho e também uma auto-estrada, corre de leste para oeste e do seu ponto mais alto avista-se de um lado toda a cidade, Los Angeles, e do outro, o San Fernando Valley. “Em pé, lá em cima, podemo-nos sentir Deus — ou o Diabo”, diz o ensaísta e crítico David Thomson em “Beneath Mulholland — thoughts on Hollywood and its ghosts” [Alfred A. Knopf, 1997], uma colectânea de textos desvairados que abanam aos ventos indefinidos da fantasia e da crónica jornalística, que ele publicou, entre 1980 e 1996, em revistas como a Movieline, a Vanity Fair, a Film Comment ou American Film.
Sigamos com ele, então, por Mulholland Drive. Um aviso, primeiro: as estradas vão, habitualmente, de A a B, mas Mulholland “tem mais a ver com estar lá em cima do que com qualquer destino” — tem mais a ver com estatelar-se por ali abaixo. Diz a lenda que quem vai de A a B (de Cahuenga ao Oceano Pacífico, hora e meia a guiar) ou é aventureiro ou é suicida.
Thompson imagina Mulholland como o corpo de Marilyn Monroe, deitada de lado, meio enterrada numa crista de pedra — as montanhas de Santa Monica. Do tornozelo, avista-se o Hollywood Bowl; virando à esquerda, as letras HOLLYWOOD (olhando para baixo, os arranha-céus da Baixa de L.A.).
“À medida que as pernas dão lugar às coxas entramos no pedaço mais rico de Mulholland, cheia de sistemas de segurança para casas escondidas, de aparelhos de rega a sibilar para as buganvílias e para as rosas.” É aqui que vivem Jack Nicholson, Marlon Brando e os outros (mas foi também aqui que entrou Charles Manson e os membros da sua seita). É a fronteira. Poucos se atrevem a ir para além daqui.
“Mas há mais para descobrir”: uma espécie de resquício de oeste selvagem, uma estrada poeirenta, de violentas contracurvas. “É um lugar de paranóia”, de amores furtivos e droga, carros misteriosamente estacionados (deve ser aí que as chapas dos automóveis se rasgam, no início do filme de David Lynch).
Quando se pensa que é o fim, “começamos a subir pelo peito, pelos ombros e pela garganta” de Marilyn, o campo novamente habitado, por solitários e excêntricos. Depois é o mar, o Pacífico, nas ondas da cabeleira platinada de Marilyn.
Se chegou até aí, se sobreviveu à noite de Mulholland, então é porque escapou. Porque “por baixo de Mulholland há corpos enterrados”— é um poema de Nabokov, que Thompson cita —, histórias que não foram vividas. É a “twilight zone”. Thompson, como Lynch, prefere as vítimas, os cadáveres; prefere serpentear por Mulholland apanhando na cara com os destroços humanos (ou esta versão: Hollywood como uma bomba que explodiu, que ocorreu há muitos, muitos anos, mas que continua a libertar resíduos tóxicos que excitam as nossas fantasias). “Beneath Mulholland — thoughts on Hollywood and its ghosts” é o livro de um fascinado por meias-vidas e fantasmas, pela luz que treme no ecrã, pela imagem que hesita e se desvanece. É “a doença” de quem ficou agarrado às salas escuras, e isso está para além da cura. Não se morre disso, diz Thompson; “mas isso não significa que nós, os doentes, e toda a nossa cultura, não estejamos deformados.””
Dito isto, estamos situados: Los Angeles, mais precisamente Hollywood, cuja personagem é representada por uma rua com o nome de “Mulholland Drive”. E aqui chegados percebemos que pelo menos num ponto os dois críticos dizem a mesma coisa, ainda que de maneiras diferentes. O primeiro, mais céptico, diz que o filme mostra “o que se passa no mais recôndito da cabeça de David Lynch”. Como demonstra o segundo, é exactamente isso que Lynch pretende fazer: mostrar o mais recôndito da sua cabeça, mas também das mentes de Hollywood, de Los Angeles e, no fundo, de toda uma cultura alimentada a celulóide e videoclips. A grande proeza do filme é precisamente a de conseguir representar coisas novas, a de filmar estados mentais. É essa a sua dificuldade e também a sua grande conquista.
Pegue-se, por exemplo, na referência de Vasco Câmara a “Sunset Boulevard”, de Billy Wilder (1950), título que também integra este ciclo: no filme dos anos 50 temos a a história de uma actriz que perdeu o pé na passagem do mudo para o sonoro e que, à medida que envelhece, deixa de poder competir com a beleza que já teve. Em 2001 temos uma aspirante a actriz cuja realidade é incompatível com a dimensão dos seus desejos e sonhos. Betty/Diane é o protótipo do náufrago em terra, daquele que se estatelou sem chegar sequer ao topo. Assim, a mulher representada por Naomi Watts representa-nos a todos. É o quadro mental de uma geração que está a ser filmado, não apenas o das (velhas) glórias de Hollywood, nem sequer o do restrito mundo do “star-system” norte-americano. Lynch (que várias vezes durante a promoção do filme pediu para o verem com mais atenção, garantindo que “a história estava toda lá”) é esclarecedor:
“Los Angeles parece ao visitante, ao longe, uma coisa homogéna, mas não é. São muitos moods, muitas coisas. Estes diferentes ambientes podem alimentar um filme (..). A luz de Los Angeles foi o que levou as pessoas para ali. A luz e o bom-tempo; uma sensação de que aqui tudo é possível. É crítico sentir-se essa luz. (…) Em LA há uma certa criatividade no ar, diz-se aqui que toda a gente já escreveu um guião. Toda a gente tem uma fotografia para apresentar e está disposta a arruinar-se por uma oportunidade de se expressar.”
Se, nos anos 50, Billy Wilder retrata uma região muito específica dos efeitos da comunicação de massas - aquilo que o sistema faz às suas estrelas -, Lynch mostra como essa “doença” de que fala David Thomson já não se circunscreve a Bel Air e a Beverly Hills, é a mente e o filme da vida de milhões de pessoas. É o retrato de uma geração que chega ao novo século entre os vinte e os trinta anos e tem por única ambição ser arty, “expressar-se”. Viver à altura do que sonhou para si. No primeiro caso mostra-se o medium na idade em que aprendeu a falar, no segundo o momento em que, como diz Serge Daney, o cinema e a televisão, como todos os casais que estão juntos há muitos anos, “começam a ficar parecidos”.


O mal-estar no cinema
Basta recordar “O mal-estar na civilização” e “Uncanny”, de Freud, para enquadrar a temática do unheimlich que marca o tom do psiquismo de Lynch. Trata-se de pensar como a civilização impõe estruturas psíquicas ao indivíduo; como a era da técnica nos encheu primeiro de esperança e depois de medo; primeiro de amor e desejo e depois de trauma e de perda. É assim que funciona a cabeça de uma estrela (carente ou decadente, é igual) e foi exactamente isso que se filmou. É, no fundo, um filme que se passa dentro da cabeça de uma pessoa. Se já Freud falava do assunto, não defendo aqui que a sintomatologia trágica tratada por estes filmes seja uma descoberta de Wilder e Lynch, pelo contrário. O que se passa é que, dentro do cinema, foram os primeiros a perceber como filmar esses sintomas. O mesmo acontece com Coppola, em Rumble Fish, outro dos filmes deste ciclo. Se usarmos a divisão de Tarkovski entre os realizadores - que pretendem imitar o mundo o melhor possível - e os “poetas” - que pretendem criar outro mundo na tela- podemos dizer que nestes três casos a distinção é curta: – estes filmes tanto retratam o mundo como o aumentam.
Ainda as ligações entre “Mulholland Drive” e “Sunset Boulevard”. há duas referências textuais a Sunset Boulevard no filme de Lynch. Logo no início, quando a seguir ao acidente, cambaleia monte abaixo até que reconhece a tabuleta de Sunset Bl. Outra na cafetaria em que Diane contrata o assassino, que fica em Sunset Boulevard. Na placa com o nome da empregada que os atende (a que Diana rouba o seu nome onírico - Betty) aparece também, depois do nome da cafetaria, Sunset Boulevard.
Outra relação óbvia: os dois filmes são nomes de ruas. No primeiro caso é a alameda mais famosa de Los Angeles, o centro possível de uma cidade sem centro, feita de arredores e de pequenos mundos com muros e piscinas. Mulholland é, nas palavras de Lynch (em entrevista para o making of do filme), “uma estrada fora do tempo, uma estrada de sonho.” É o sítio onde nada está à vista, onde tudo é possível e todo o possível é desejado. Mulholland e Sunset são dois dos eixos centrais dos “mapas das estrelas” que se vendem nas ruas de Los Angeles para que o visitante possa fazer um sight-seeing pelos portões de entrada das casas das grandes vedetas do mundo do espectáculo. Mas as estrelas propriamente ditas nunca lá estão, só se lá chega por “atalhos secretos”.
De facto, uma das impressões mais fortes de Los Angeles é a de uma cidade que acontece em segredo e que não existe enquanto espaço público. É um aglomerado tão interminável quanto impenetrável (a não ser para os happy few da “Meca do cinema”, para as “Camillas”). É o sítio onde "se procura o absoluto, mas só se encontram coisas". Ou, como diz Betty, “estou em Hollywood e ainda não vi nada”.
Assim, os dois filmes são dois retratos de Hollywood com 50 anos de intervalo. São representações de um Real falido, sinais de que aquilo com que se sonha não existe de facto. Carregam a ideia de que a realidade soçobrou face ao imaginário em que se projecta. E, mais grave, que o mundo do sonho se infiltrou definitivamente na vigília. A este propósito, leia-se Slavoj Zizek em Organs without bodies (Routledge, 2004, pp 167-170, tradução minha):
“Mulholland Drive de David Lynch retrata na perfeição esta gradual desintegração {da fantasia}. Os dois estádios principais desta desintegração são, primeiro, a actuação excessivamente intensa na cena do teste, e, depois, quando o objecto parcial autónomo (“orgão sem corpo”) emerge na cena do nightclub Silêncio. Aqui, o movimento vai do excesso, que está ainda contido na realidade apesar de já a começar a pertubar, saindo para fora dela, para a sua completa autonomização, que causa a desintegração da realidade ela própria; digamos, da distorção patológica de uma boca para a boca a sair do corpo e a fluturar como um objecto espectral parcial(…). Este excesso é aquilo a que Lacan chama lamella, o objecto infinitamente plástico que se consegue transpor de um medium para outro: do excessivo (trans-semântico) grito para a mancha (ou distorção visual anamórfica). Não é isso que se passa no grito de Munch? O grito é na verdade silencioso, um osso entalado na garganta, uma paragem que não pode ser vocalizada e que se pode expressar apenas sob a forma de uma distorção visual silenciosa, curvando o espaço em redor do sujeito que grita.
Em Silencio, onde Betty e Rita vão depois de terem feito amor com sucesso, uma cantora canta em espanhol Crying, de Roy Orbison. Quando a cantora colapsa a música continua. Neste ponto é também a fantasia que colapsa – não no sentido em que “a bruma dissipa-se e estamos de volta à sobria realidade”, mas antes no sentido em que, de dentro, tal como era, a fantasia perde a sua ancoragem na realidade e autonomiza-se, como pura aparição espectral de uma voz “não-morta” sem corpo.(…) Este real, claro está, é o Real fantasmático mais puro. E, para o colocar em termos deleuzianos, não será esta “autonomização” do objecto parcial o momento preciso de extracção do virtual partindo do actual? O estatuto de “orgão sem corpo” é o do virtual – noutras palavras, na oposição entre o virtual e o actual, o Real lacaniano está do lado do virtual. (…) O crucial é que, durante um breve instante, parte da realidade foi (mal)entendida como uma aparição assombrosa – e, de uma certa maneira, esta aparição é “mais do que a própria realidade”, na medida em que, dentro dela, brilhou o Real. Resumindo, é conveniente distinguir que parte da realidade foi “transfuncionalizada” através da fantasia, para que, apesar de ser parte da realidade, seja percepcionada de uma maneira ficcional. Muito mais difícil do que denunciar/desmascarar (aquilo que aparece como) a realidade enquanto ficção é identificar na realidade “real” a parte de ficção. Não é isto que acontece na transferência, durante a qual, enquanto nos relacionamos com a pessoa que temos defronte, efectivamnete nos relacionamos com a ficção, por exemplo, do nosso pai?”
A análise de Zizek ajuda a perceber como se produz esse ponto de encontro entre o real e o imaginário. (Não serão essas as instâncias que estão retratadas no clip inicial do filme com a vitória de Diane no concurso de dança, através de uma sequência de camadas sobrepostas que se "inter-recortam" para mostrar o estado mental em que a protagonista é entregue à cidade?)
Em termos mais genéricos, o método usado em Mulholand Drive, Sunset Boulevard e Rumble Fish tem uma semelhança central: ao fazerem retratos de "espaços mentais" e ao contrário do que mandam as regras de Hollywood, nem tudo está entregue às personagens: a mansão decadente de Norma Desmond, a cidade pós-industrial do Motorcicle Boy e a estrada metafísica de Betty e Rita, todas são personagem. É como se a própria lente fosse a personagem principal na medida em que determina as relações entre as coisas e lhes confere uma afectação inexorável. Ou seja, numa relação entre duas coisas o elemento central está sempre ausente porque é o terceiro elemento, é quem estabelece a relação entre as duas coisas, as junta e apresenta. Esse terceiro elemento é o olho. Estamos então face a três exemlos de cinema em que não há apenas actores, mas em que o espaço e o tempo são elementos centrais.
O golpe que Lynch dá na história do cinema diz respeito à maneira como usa as suas convenções e, mais precisamente, os seus raccords para induzir o erro e a ambiguidade. Por exemplo na cena em que, depois da separação, Diana é atormentada por visões/recordações: o jogo de raccords de posição e de movimento e o uso do contra-campo são feitos“by the book”. Mas fazem supor que a cena tem uma linearidade temporal, o que não acontece. Ou seja, aquela gramática diz aos nossos olhos que as coisas estão a acontecer cronologicamente. O filme diz ao nosso intelecto que não é nada disso que se está a passar. Lynch explica:
“É muito interessante ter uma coisa que nos faça pensar noutra coisa. É um artifício no qual gostaria de me voltar a fazer cair. É interessante porque nos pôe a cabeça a pensar de uma maneira diferente”
Resumindo, com cerca de 20/30 anos de intervalo entre cada um, os três filmes são procuras do zeitgeist do mundo e do cinema. São tentativas bem-sucedidas de romper com as maneiras tradicionais de contar histórias, nomeadamente com o método de fazer depender dos actores a produção da transcedência. São experiências de imersão em regimes mentais em que as personagens perdem dimensão. As personagens estão esmagadas pelo tempo e pelo espaço - pela impossibilidade de deixarem de ser elas próprias. Umas querem ser o que já foram, outras querem ser quem têm à volta. “Vamos fingir que somos outras pessoas, fazer como nos filmes”, diz Betty a Rita. Não podem.
Nesse trabalho de retratar estados mentais é essencial o papel desempenhado pela banda sonora. Houve um investimento muito superior ao habitual na criação de paisagens sonoras que dialogam com as imagens e com o texto servindo para os “situar" emocionalmete. Badalamenti chama a atenção para o facto de os filmes de Lynch terem muito silêncio, longos trechos sem diálogo. O que lhe é pedido, sublinha o autor da banda sonora, é bastante mais do que música. Refere mesmo a maneira como o cineasta lhe faz as encomendas, antes ainda do início da rodagem e de forma metafórica, descrevendo atmosferas e ambiências em vez de dar referências cénicas ou narrativas. Já na montagem muitos destes sons seccionados, atrasados ou aceleradas para criar o efeito pretendido (Lynch assina, na ficha técnica, a composição de "trechos adccionais" da banda sonora)
O jeito “metafórico” que Lynch tem de dirigir é também referida por Laura Elena Harring. No making of do filme, conta que para a cena do acidente de automóvel, o realizador lhe pediu apenas para sair do carro como uma “boneca partida”. Tanto o trabalho com os actores como a manipulação do som e da luz (e a montagem) são decisivos para a construção do unheimlich que referi no início do texto. Concorrem para a noção de que o cinema e a televisão não nasceram para dizer as coisas, mas sim para as mostrar e para, sempre que possível, fazer sentir. E, nos três filmes em apreço, implicam a noção de que a realidade se tornou metafórica, se despositivou.
O unheimlich é aquilo que nos assombra porque é, ao mesmo tempo, estranho e familiar; é aquilo que deveria ter permanecido íntimo e foi tornado visível; é o que deveria ter ficado no segredo dos deuses e foi posto à disposição dos mortais; é aquele instante em que a realidade nos aparece como um fantasma. Esse assombro (causado pelos nós lógicos que as maravilhas da técnica dá nas nossas pobres cabeças) começou com o espanto de Narciso ao espelho, passou pelo gramofone quando, pela primeira vez, um homem ouviu uma máquina a falar (e percebeu que havia coisas “não-mortas”, como diz Zizek). Esse assombro, nas diferentes formas que tem assumido ao longo dos anos, é outra das grandes personagens de Sunset Boulevard, Rumble Fish e Mulholland Drive.

Cinema e televisão: tropismos
Em 2005, o realizador Michael Cimino esteve na cinemateca de Lisboa. Em conversa com cineastas e estudantes de cinema, chamou a atenção para um pormenor: durante as filmagens, os realizadores contemporâneos assistem às filmagens através de um minúsculo monitor. Isto quando, diz o realizador de Heaven’s Gate, a cena está “toda lá”, à frente deles, à frente câmara. Como se estivessem a fazer apenas televisão, algo para ser visto pequeno. É curioso constatar, nas imagens da rodagem e no making of do filme, que a descrição de Cimino aplica-se a Lynch. Durante a gravação, ele está, de facto, a olhar para o pequeno monitor (o que não quer dizer que não tenha marcado e preparado a cena antes). O alerta de Cimino é extremamente pedagógico e expõe uma espécie de "tique" industrial por oposição a uma cena que exista de facto e não seja apenas simulada.
A este propósito pode invocar-se também a sequência final de Sunset Boulevard, em que Erich Von Stroheim, no papel de si próprio. O realizador grava a descida de Norma Desmond, mas está ao lado da câmara (e não atrás dela). Pode ainda lembrar-se outro dos filmes deste ciclo, Vai & Vem, de João César Monteiro. Neste caso leva-se ao limite a noção de que a cena se produz em frente à câmara, a cena é uma performance. Em César, a fotografia não tem discurso, a fotografia mostra. Neste caso estamos mais perto do teatro e mais longe da televisão. A ideia de que o cinema é feito em frente à câmara está tão levada ao limite que o filme - feito para ser visto depois da morte do realizador - assume uma forma mediúnica. Uma obra feita do lado de lá da câmara e da vida. Julgo que o cinema de Lynch ajuda a resolver o dilema de Cimino, na medida em que mostra que não há um determinismo irresolúvel do medium que o condicione a um tipo único de discurso. A maneira que cada medium, nas suas infinitas cambiantes, tem de se adaptar ao meio não o condena ou salva à partida. Prova disso é a variedade das propostas apresentadas neste ciclo.
Não serve esta argumentação para contrariar o facto de a ligação de Lynch com a televisão ser muito forte. (Defende é que não pode ser vista como uma profanação.) Os créditos que o realizador tem internacionalmente começaram pela TV, com Twin Peaks - outra grande experiência ao nível dos limites cognitivos do espectador. Mulholland Drive começou por ser um episódio piloto para uma série da ABC. Foi recusado. Depois pensou-se em transformar a ideia numa mini-série. Depois de meses de interrupções e indefinições, fez-se o filme. A primeira parte está ainda muito marcada por este processo de avanços e recuos, como refere Vasco Câmara. O realizador esclarece: “um piloto tem muitas aberturas, mas poucas saídas, esse é o truque”. O dois primeiros terços do filme foram filmados primeiro, são as tais “aberturas”. O terço final, que resolve a narrativa, foi filmado posteriormente para concluir a rodagem e transformar a ideia num filme. A primeira hora e meia está ainda carregada desses pequenos fogachos, despojos do episódio piloto.
Mary Sweeney, a montadora (e também produtora) do filme explica o método usam pós-produzir os filmes: fazem um orimeira montagem de tudo o que foi filmado, com cerca de 5 horas. Depois começam a lapidar e vão eliminando pedações, mudando de lugar. Esta noção de montagem não-linear, mais orgânica e muito menos pré-determinada é também uma metodologia que se afasta as regras do cinema clássico. No caso de Mulholland a primeira montagem tinha quatro horas e meia. Ficou com 151 minutos.
A confusão entre o cinema e a televisão está na génese do filme tanto quanto está na sua linguagem. Mas o produto final sobrevive às duas provas, aos dois media resulta em sala, mas também "funciona" em pequenos formatos. (É particularmente lúdico em versão home-cinema, com a hipótese de voltar atrás). A verdade é que a esmagadora maioria da produção de Hollywood já se financia e destina mais ao pequeno ecrã do que à exibição em sala.
Outra maneira ainda de olhar para este casal: e se, com o andar da carruagem, o equilíbrio de forças entre marido e mulher se tiver alterado? Nos anos 50 o cinema era bastante autoritário, comandava as operações. Em 2001 não dá sequer para comparar com o tempo de antena conquistado pela esposa. Vai-se ao cinema de vez em quando, a televisão está lá todos os dias. A visualidade contemporânea, para usar o conceito de Benjamim, depende mais dela do que dele, ainda que seja ao cinema que se pede o grande espectáculo, a invenção. Vistas as coisas assim Mulholand Drive é um daqueles dias em que o casal trabalhou bem em equipa.
Mas esta reflexão sobre os media não fica completa se nos ativermos à ideia de que apenas a televisão e o cinema desempenham aqui um papel. Já foi referido o modo como Lynch (à semelhança de Wilder e Coppola) se dedica especialmente à criação de espaços mentais. Essa experiência sensorial não é senão o programa da instalação e da arte contemporânea em geral: mais do que elaborar um discurso, trata-se de produzir o espanto e uma sensação de imersão (abismar). Fora do espaço e fora do tempo. Ouçamos Lynch uma última vez:
"Neste filme o conceito de amnésia liga-se com o de acting: o actor abdica de quem é e transforma-se noutra pessoa. Toda a gente, eu incluído, se quer perder, encontrar-se num mundo novo. O cinema dá essa oportunidade, de nos perdermos completamente num outro novo mundo."
Esta última pista de Lynch faz-nos regressar à ideia inicial: fronteira mágica entre a realidade e a ficção; o sono e a vigília. O primeiro momento em que o chão nos foge dos pés em Mulholand é quando, por momentos, julgamos ouvir Betty a espantar-se com Rita pelo facto de ainda não se ter ido embora da casa onde estão: "o que é que ainda está aqui a fazer, os meus pais estão lá em cima." Por instantes, fazem-nos crer que Betty está mesmo a discutir com Rita. A questão de Rita poder ou não estar naquela casa está em cima da mesa. Ela está lá encondida. O mistério é resolvido quando abre o plano e aparecem as folhas de papel nas mãos das actrizes: estão apenas a passar texto. Pouco depois, na cena do casting, a mise en abyme continua: Naomi Watts representa que está a representar. A cena, notável, é uma espécie de Las Meninas do cinema.
O abismo é tal que, a dada altura, nos damos conta de estar a ver o filme do filme que está a ser feito. As suas interrupções e indefinições, o casting, a rodagem e, principalmente, os bastidores e as mentes daquela gente. Na cena central, no nightclub Silencio, a produção do abismo está cuidadosamente preparada: por um lado os insistentes avisos do apresentador: "no hay banda". O filme mostra exactamente o contrário: "hay banda". Entra o trompete que, afinal, não toca. O filme está-se a negar-se a si próprio. É como o jogador de uma equipa adversária que nos faz duas vezes a mesma finta e nos engana sempre da mesma maneira. Lynch faz aquilo que está proibido entre os ilusionistas: revela o truque. Está a fazer cinema e a desmontar o cinema ao mesmo tempo. Logo a seguir ao trompete entra em palco Rebekah Del Rio. Dá duas tapinhas no micro e o som ouve-se: parece que funciona. A cena é particularmente longa, a música vai quase até ao fim. Nada denuncia o playback, mas ela desmaia. Terceira finta: a música continua. A loura parece que morre no fim.
.: Publicado por lgm @ 11/18/2006 - 2 Comentário(s)
Comédia de Deus, João César Monteiro: literatura, vida ou cinema?
“Serei pó, mas pó enamorado”
João César Monteiro

Introdução


A pergunta de que parte este trabalho tem por base duas ideias-feitas sobre o cinema de João César Monteiro: a de que se trata de uma obra feita de palavras (ora da esfera do erudito ora do popular) e a de que é um cinema auto-biográfico (uma espécie de terapia ocupacional). Estas duas abordagens ajudam a descrever este cinema, mas não o explicam cinematograficamente. Não tratam de cinema.

É indesmentível a profunda erudição de César e a constante referência à história da literatura. Na Comédia de Deus, como no resto da obra do autor, há uma profusão de citações que o ilustram à saciedade (vide Ana Gusmão in “O popular e o erudito em Recordações da Casa Amarela”). Da mesma maneira, estão sempre presentes as palavras da cultura popular e as respectivas estruturas de saber. As duas esferas, o popular e o erudito, surgem frequentemente em equilíbrio e equivalência. São apenas duas faces da mesma moeda, são fontes. Não há dúvida de que é uma das camadas mais importantes deste cinema. Em muitos casos será mesmo a sua porta de entrada. É um mundo, um tecido de tal forma rico que não se lhe pode ficar indiferente. É uma presença que chega a ser um pouco esmagadora e a intimidar no primeiro contacto com a obra.

No caminho para descobrir o que há de cinematográfico neste cinema terei em atenção aquilo que o autor disse e escreveu sobre (o seu) cinema e, tanto quanto possível, descreverei os processos técnicos do seu método de filmar. Trata-se portanto de identificar as grandes questões da obra e de analisar os processos de as trabalhar.



Contexto


Cinematograficamente falando, há pelo menos três grandes filições de César: o cinema mudo, nomeadamente o de Murnau, as comédias portuguesas e o cinema novo português enquanto eco da nouvelle vague francesa. São inscrições assumidas pelo autor que ajudam a começar a trabalhar a obra e que são fáceis de encontrar no filme em apreço:

1. Cinema mudo/Murnau
• Apanágio do cineasta, também em “Comédia de Deus” são recorrentes os planos de câmara fixa em que se escolhe um enquadramento que dura até ao fim do plano e, por vezes, até ao fim da própria cena (plano da balança enquanto o protagonista fala ao telefone).
• De um modo geral, a narrativa não depende dos diálogos e da maneira como as personagens “explicam” ao espectador o enredo e as suas motivações causais. Os diálogos surgem como um tecido, outra camada que acompanha a narrativa e desencadeia um universo de referências, uma atmosfera. A maneira como as histórias estão a ser contadas pelas imagens não está ancorada, não depende da palavra.
• A utilização de longas sequências apenas com música e com a exacta duração do trecho musical remete igualmente para o cinema mudo (habitualmente acompanhado por um narrador, ao vivo, na sala, e por acompanhamento musical, também ao vivo e na sala). De um modo geral, a ligação ao cinema mudo é transversal na medida em que a essência da obra pretende ser mais poética do que enunciativa ou declarativa.

2. Comédias portuguesas
• João César Monteiro entra nas lides do cinema pela mão de Seixas Santos. É montador e assistente de realização, nomeadamente de Perdigão Queiroda, em 1961. Mais tarde, reconhece que “poderia ter aprendido mais qualquer coisa se não tivesse sido tão presunçoso” (in “A minha certidão, &etc nº4, Fevereiro 1983). São os anos em que tudo está a mudar no cinema português, com a tradição da comédia portuguesa a chocar com a vontade de fazer um cinema novo. É nesse ano que Dom Roberto está em rodagem, é um par de anos depois que Oliveira estreia o Acto da Primavera e que Paulo Rocha apresenta Verdes Anos. A formação humana do cineasta já havia passado por Paris e a formação académica completa-se em 63 com uma bolsa da Gulbenkian na London School of Film Technique. Tudo isto para ilustrar a ideia de que o cinema de João César Monteiro nasce e vai florescer na encruzilhada que marcou, em todo o mundo e especialmente na Europa, profundas mudanças nas maneiras de fazer cinema, que desenvolverei quando falar do cinema novo.
• As semelhanças ou citações das comédias portuguesas no filme em análise são óbvias. Desde logo pela maneira de filmar a vida bairrista da cidade. As personagens pré-modernas e sem profundidade que habitam a cidade poderiam existir numa comédia dos anos 40. Até na maneira de filmar estas personagens - pelo cómico e o pitoresco, com uma certa sobranceria - de cima para baixo - remete para as comédias portuguesas.
• Ao nível dos diálogos, marcados pelo trocadilho espirituoso e pelo caricato, há também uma maneira de tratar a língua portuguesa com raízes no que de mais interessante se fez no cinema durante o fascismo ao nível do burlesco e da comédia de costumes.
• Há uma citação directa do filme Pátio das Cantigas na Comédia de Deus. Na primeira cena no talho entra na loja um rapaz um rapaz faz a pergunta sacramental: “ó Evaristo, tens cá disto?” .

3. Cinema novo/Nouvelle vague
• Aqui a filiação é, antes de tudo, geracional. É uma relação familiar directa, mas cuja natureza também dá pistas para várias dimensões desta obra. O cinema novo português, eco da geração dos Cahiers du Cinéma, define-se precisamente pela tentativa de constituir uma poética para lá da narratividade, de descobrir uma maneira de fazer poesia sem ter de filmar os livros. Há uma relação intensa com a literatura, mas não pelo romanesco, antes pela poética. Ou seja, esta escola está ligada às ideias de que o cinema não carece de ser narrativo e de que deve ser uma arte e não uma indústria. É um projecto de libertação ou de deslocalização do real e de libertação do cinema que acompanha todos os filmes de César. Está sempre presente uma descrença na ideia de narração que o autor praticou e teorizou abundantemente. Num pequeno filme feito para promover a Comédia de Deus (depois das primeiras filmagens terem sido interrompidas ao fim de três semanas), é peremptório: “a fotografia não representa nada, não interfere”. Ou seja, a fotografia não deve ter valor dramático, deve apenas registar. O mesmo se pode dizer das personagens, que mais não fazem do que confrontar-se com as obsessões do protagonista João de Deus. Não representam, reagem. Até os pequenos enredos dos filmes de César existem apenas para construir a possibilidade das cenas ajudando a construir as atmosferas em que assenta o filme. “A moderna crítica de cinema (“Cahiers du Cinéma”) viu muito justamente a apropriação que o cinerma moderno tem feito de formas teatrais como uma tentativa de escapar a uma representação naturalista em que a reprodução do real condena fatalmente o cinema ao tipo de representação que mais favorece a ideologia dominante” (in JCM, “O Passado e o Presente”, Diário de Lisboa/Suplemento Literário, 1972).
• A reflexão sobre o país é outro dos traços do cinema novo. O país, a que habitualmente se refere como “a piolheira”, está também presente. Mas, ao mesmo tempo, é a própria pergunta “o que é Portugal?” que é posta em causa. “Duvida-se de tudo, inclusive da própria existência do país. Não consigo imaginar um francês capaz de perguntar a sério se a França existe.” (in JCM, “Os soluços lentos dos sons do Outono”, 1991) A especificidade do cinema de César é marcada também por um cepticismo em relação a esse cepticismo. Recusou as prisões interiores e as limitações que essa doença auto-referencial impôs ao cinema português. É também por isso que adquire um lado solar e telúrico que falha em muitas das derivas plásticas do cinema nacional. É um cinema sobre o mundo, a sua beleza. As questões nacionais estão até mais presentes nos seus escritos do que nos filmes.
• Em relação à nouvelle vague há também uma filiação que se transforma em descolagem. Em entrevistas várias (vide catálogo cinemateca) o autor diz claramente que nunca desejou ser mera “filial” do cinema de Godard e Truffaut. Desde logo porque a familia é mais vasta - já aqui se falou de Murnau, pode falar-se também de Rosselini e Renoir. Ou seja, a entrada fez-se com um programa muito próximo destas referências que se sentem ao longo de todo o caminho, mas da trilogia em diante é muito claro que o ponto de chegada deste cinema deve tanto às descobertas do cinema francês quanto a toda a história do cinema. É disso que trata uma das cenas mais importantes do filme em questão: a dada altura João de Deus é confrontado com a iminência da fusão da geladaria que gere com uma congénere francesa. Chegado o geladeiro homólogo (personagem que César queria representada por Jean Pierre Léaud no papel de Antoine Doinel de Truffautl Léaud não apareceu, mas que em cima da hora o lugar foi assegurado por Jean Douchet, crítico e cineasta) João de Deus faz o discurso-manifesto em que se emancipa das famílias portuguesa e francesa. Exige-se no direito de ter um olhar próprio. Este processo de libertação e de abandono do complexo provinciano/periférico em relação à Europa é a chave dessa libertação e é o tema de uma boa parte do filme em análise. Ou, como remata em Vai & Vem, “o que é bom na freguesia das Mercês também é bom nos Champs Elysées.



A luz e o som


A luz não ilumina. A luz vê-se e a luz filma-se. As referidas ideias-feitas sobre o cinema de João César tendem a pensá-lo como uma obra em torno da palavra, com poucas preocupações plásticas, como se o importante fossem apenas os diálogos, enfim, a literatura. O autor conta, em vários trechos do catálogo da cinemateca portuguesa que lhe foi dedicado, que durante anos lhe disseram para abandonar o cinema, para o qual tinha pouco talento. Que se voltasse para a escrita, onde dava provas. Depois de explicar como mandou os críticos “à fava” e lhes disse que se estava “nas tintas para o talento”, conta que necessitou de “assassinar o escriba” para deixar florescer o cineasta.

O que espero ilustrar é como essa ideia-feita nos afasta do essencial e único em César Monteiro: um discurso radical e uma experimentação que, nos últimos filmes, se torna particularmente inovadora. A intensidade plástica está, aliás, presente desde a primeira hora, por exemplo, na primeira obra, sobre Sophia de Mello Breyner. O que acontece é que essa experimentação obedece a um princípio de rigorosa simplicidade e de recusa de todo e qualquer artifício. Para isso existe “a indústria do ice-cream”.

O detalhe das descrições de cenas que estão coligidas no catálogo da cinemateca e a maneira como César filma e refilma a mesma cena até conseguir o que deseja - a cena da banheira e do banho de leite foi preparada na curta-metragem Lettera Amorosa e depois “executada” na Comédia de Deus) - desmontam a sensação inicial de um cinema sem discurso cinematográfico. Pelo contrário está quase tudo previsto, nomeadamente nos detalhes muito técnicos sobre a captação da imagem e do som. O resto é a magia que se produz em cena, objecto do próximo capítulo.

Curiosamente, as preocupações em torno da luz marcam toda a história de Comédia de Deus. Foi escrita para ser uma co-produção megalómana de quatro países europeus, filmada em cinemascope e rodada em Veneza e Paris. A rodagem foi interrompida ao fim de três semanas. O realizador gostava bastante da “lateralidade” do formato, mas encontrou problemas com a profundidade de campo. A filmagem em cinemascope implica um maior recurso à iluminação artificial e, de um modo geral, impõe mais espartilhos à produção. Duas coisas a que a crueza do método de João César Monteiro não resistiria. Apesar do desejo de fazer um filme mais “normal” , como referem o produtor e o director de fotografia, de usar os grandes movimentos de câmara e os planos de grua, o despojamento de César não aguentava esse excesso de representação imposto pelos ditames de uma equipa colossal. As filmagens estiveram interrompidas durante largos meses e recomeçaram, apenas em Lisboa e com o guião dividido em dois. Da segunda parte nasceriam “As Bodas de Deus”. A trilogia era para ter sido um díptico.

Na entrevista incluída no dvd editado pela Madragoa Filmes, o director de fotografia da “Comédia de Deus” explica qual a liberdade dada ao director de fotografia: “Nenhuma! (…) O realizador faz a luz, o director de fotografia faz a iluminação”. Todo o projecto do filme passava pela quase inexistência de luz artificial, usada apenas quando absolutamente indispensável. É toda essa ideia de não representação que determina por um lado a luz e por outro a relação com os actores (maioritariamente não profissionais) e até com a narrativa, quando existe narrativa.

Do mesmo modo, o trabalho com o som é determinante. O som é quase sempre directo, ou seja, aquilo que o espectador ouve é o que se ouviu no plateau durante a filmagem (a música, as falas, o som ambiente). Mais uma vez, a manipulação é mínima. O filme não se fabrica na sala de montagem, quase não precisa de montagem, parece que se montou na câmara à medida que foi sendo rodado. Resumindo: o filme é o que acontece durante a rodagem. A única presença tangível do som (enquanto imposição) acontece com a música, peça central desta teia de César. Sente-se quando toda a cena é determinada pela música: ora pela encenação e pelo movimento dos corpos, ora pela duração do plano, ora ainda pela “elevação” que a música confere à imagem. Por exemplo, no plano do cordeiro de deus cuja cabeça é cortada (e o plano com ela) que termina só quando a música acaba. Esse plano, aliás, foi filmado à medida. O realizador encomendou ao director de fotografia 30 segundos de cordeiro para a música previamente escolhida. Esta relação com a música é talvez a única cedência que César faz ao espectador, na medida em que a música sempre confere uma espécie de consolo à imagem. Ainda assim nunca o faz pela via da facilidade, de fazer o tempo andar mais depressa. Pelo contrário, a banda sonora é sempre um elemento de ligação ao sagrado.

Em relação ao som, como em relação à luz, todo o processo de produção é diametralmente oposto ao da indústria, que os remete para a condição de meros extras que ajudam a passar a história. A este nível importa acrescentar que todo o filme foi rodado por ordem cronológica das cenas, ao contrário do que manda a indústria. Deste modo se garantiu uma maior liberdade de criação e improviso e, talvez mais importante, uma coerência orgânica do filme.

Estas formas de despojamento, de recurso ao mínimo essencial, criam uma das grandes forças deste cinema. A tese que defendo é que a presença da palavra e a riqueza do universo verbal de César Monteiro tendem, num primeiro visionamento, a esmagar a delicadeza deste cinema. Ao ponto de, a experiência recomenda-se, a Comédia de Deus ser um filme que resiste muito bem a um visionamento sem som. Aí, a qualidade das imagens e a luz do filme ganham uma amplitude que parece ter escapado no primeiro contacto. É como um filme mudo em que as personagens dizem tudo com o corpo e com os olhos, em que a história se conta por si. A este propósito é curioso recordar o que escreveu o realizador sobre aquele que (tal como como Truffaut) considerou o mais belo filme de sempre - “Aurora”, de Murnau: “através das formas do corpo descobrir o conteúdo da alma, através do falso descobrir o verdadeiro”.

Para encerrar o discurso sobre a não-representação e a relação do cineasta com as essências do cinema volto ao que disse o autor sobre como evoluia a sua relação com o medium em “Os soluços longos dos sons do outono”, de 1991: “ se toda a gente podia filmar eu também podia, na altura queria só ter uma camarazita. Hoje já não penso assim. Acho que para filmar nem preciso de ter uma câmara: preciso de um pouco de luz na minha cabeça e basta” .

Para ilustrar ao ponto a que chega a experimentação teórica ao nível do som e da luz basta dizer que muito do cinema de César é quase mudo e, pelo menos um filme, Branca de Neve, é cego ou quase.



O tempo e o espaço


Este é o território mais difícil e menos explorado do cinema de César Monteiro. Na impossibilidade de lhe dar resposta é contudo possível começar a reunir sinais. São poucas as pistas que deixou escritas sobre o assunto. Ao jeito de Mallarmé, que procurava o “algoritmo do mundo” e a “explicação órfica da terra”, a este propósito César falou sempre de modo feérico. Como quando, no seu diário, enuncia a procura de “uma mundividência de longo alcance, chamemos-lhe cinema, este que sinaliza o fim de toda a representação”. Ou quando responde em entrevista sobre a Comédia de Deus: “vou dizer uma aberração. Será que consegui pôr o espaço no tempo? Para o conhecimento do filme, talvez seja preciso ir pelo lado da astrofísica. Digo isto modestamente.” (in Entrevista Com um Vampiro por Pierre Hodgson, catálogo cinemateca).

Julgo que a aura desta cinematografia se funda nessa ideia de libertação do tempo e do espaço, de tocar no essencial, que está ao mesmo tempo em todo o lado e em sítio nenhum. Como se todo o projecto fosse filmar o céu apontando a câmara para baixo. Ou de, nas palavras de Teresa Cruz, “encontrar o que há de eterno no provisório”. (in prefácio a “O Pintor da Vida Moderna”, edições Vega, colecção passagens)

Apesar das dificuldades, há algumas pistas no filme que nos podem guiar. Em primeiro lugar uma curiosidade: até a tipologia da casa de João de Deus muda ao longo do filme. A porta de uma casa de banho passa a dar entrada para uma sala. Há um lado orgânico e onírico no espaço. Tal como é orgânica e onírica a maneira de Max Monteiro deambular pelo espaço e pelo tempo. Algo que nos liberta da inflexibilidade física do real e nos transporta para o mundo livre do cinema. Sente-se na duração dos planos, sempre no limite da capacidade de concentração do espectador; sente-se num ritmo muito próprio, ora controlado de dentro do plano pelo realizador/actor ora marcado pela música; sente-se ainda pela irrelevância da narrativa que se desenvolve ao ritmo das obsessões de César.

É interessante a este propósito recordar o último filme, Vai & Vem. Foi feito para ser visto depois da morte do autor. Revisitado depois do facto consumado, tem um poder radicalmente diferente. É um filme realizado por alguém que já morreu, que já está dentro da tela, num lugar oposto ao do espectador. Lugar esse a que César abdicou em definitivo quando passou a entrar como personagem nos seus filmes, na condição de centro absoluto da sua própria cosmogonia. É a ubiquidade total quando, no final, aparece no seu próprio velório para roubar os sapatos do defunto. É mais um dos nós lógicos de César. Estamos então na terceira e última etapa de não-representação. O filme não tem fora de campo, é a cosmogonia de um homem que se filma no mundo que criou.

Em Comédia de Deus é como se nem tivesse que dirigir. A propósito das cenas com Joaninha, disse-o claramente: “já não sabia quem estava a dirigir quem”. É um voyeurismo que se vê, o olho que se olhae que nos olha da morte para cá.

A este propósito é interessante recordar a passagem de Cimino pela cinemateca portuguesa em 2005. Em conversa com estudantes de cinema referiu como repara com perplexidade que os jovens cineastas, sem excepção, acomnpanham a rodagem olhando para minúsculos ecrãs quando têm o cinema todo a passar-se logo ali à frente. João César, arrisco, estaria completamente de acordo. Está muito presente na Comédia de Deus a sensação de que a transcendência se produz em cena, durante a filmagem.

Segundo os testemunhos dos actores e das equipas técnicas, era muito raro um plano ter mais do que dois takes. Primeiro uma espécie de ensaio para acertar marcações e depois o plano. É a ideia de performance em frente à câmara. O cineasta chega com um dispositivo cénico (a cena e os diálogos demoraram uma eternidade a preparar), mas o cinema é feito na hora. Diz o autor:“O ideal é chegar ao plateau com a frescura de uma rosa e a agilidade de um caçador perante a presa. Para bem poder saudar a beleza do mundo, como é evidente. E a beleza do mundo, como se sabe, é a beleza do cinema”.

Esta intensidade é descrita por Cláudia Teixeira, a protagonista, na entrevista que se encontra no dvd da Madragoa filmes. Na cena dos ovos - uma cornucópia cheia de ovos em cima da qual Joaninha se senta – mais do que um desconforto físico houve uma grande violência psíquic. É disso que falam as equipas técnicas quando referem cenas no limite do intolerável. Refiro-me a uma intensidade que não tem nada a ver com sexo ou nudez. Cláudia Teixeira explica-o quando diz que a cena do banho de leite, por exemplo, em que está integralmente nua não tem comparação no que diz respeito a essa sensação de desconforto e de deserto emocional.

Aquilo que a equipa de filmagem sentiu é em boa parte aquilo que o espectador ainda sente. No que diz respeito à nudez ou ao suposto abjeccionismo de César considero que este filme prova até o contrário. A nudez é sempre filmada à distância, lateralmente e apenas na cena do banho. Não tem nada a ver com abjeccionismo ou nudez a dolorosa beleza de cenas como aquela quem que João de Deus está à janela acariciando o cabelo de uma das funcionárias no qual coloca uma fita amarela. Julgo que mais facilmente se poderia até falar de um considerável pudor na maneira de filmar e iluminar os corpos. No linguajar de César, apetece dizer que um big-bang não é a mesma coisa que um gang-bang.



Alquimia (conclusão)



De um modo geral, o discurso de João César Monteiro desenvolveu-se muito em torno dos temas do sagrado e do profano, tanto pelo erudito quanto pelo popular. É frequente ouvir-lhe nos filmes e nos escritos interrogações como “a vida, o que será/ a morte o que será?” e de uma procura da pureza na terra. Por exemplo, nos “sonhos da infância que são sagrados”. O que acontece é que o processo de produção dessa pureza é da ordem do alquímico, da ideia segundo a qual a quantidade certa do veneno é precisamente o seu antídoto. Não será isso que está em causa no último verso do poema de Camões que sublinha duas vezes ao longo do filme “o mágico veneno da minha circe que pôde transformar meu pensamento”?

O fenómeno é descrito por Paula Soares: “Admiravelmente, João César Monteiro vai buscar o nome de um santo português nascido em 1495 - João de Deus - que em tempos protegeu prostituídos e doentes. Sexo e morte, dialéctica inerente ao erotismo batailliano e ao cinema monteiriano. No qual, umas vezes, essa lógica surge de forma subtil e metafórica, implícita, e, outras, mais evidente e aligeirada.

O cinema de João César Monteiro é transgressão, desejo que só é permitido (carnalmente) no teatro e, ou, no cinema. Porque acredita que não é actor, João César Monteiro encontra no cinema o lugar para o seu propósito. Realizador que encara o cinema como provocação e arte: teatro dos desejos, onde a desopressão convive com a proibição, o deleite com a perversidade. Corpo transgressivo feito de paixão e de pecado esculpido na cenografia dos sentidos eróticos, ora subtis, ora escatológicos, do qual emerge uma linguagem erótica, com alguns referenciais, mas, e sobretudo, capaz de se definir como monteiriana.”

Seja pelo rituais mais ou menos sacrificiais das adolescentes, seja pelo cinema crístico de que fala Paula Soares, em que o protagonista é uma espécie de santo-pecador em permanente ida e vinda entre o crime e o castigo, o que está em causa é sempre um jogo com a teoria dos limites, com a manipulação das ínfimas quantidades. É o jogo de quem não acredita em deus e deseja uma religião. Respondendo à pergunta de que parte este trabalho, este cinema não é nem vida nem literatura. É a Vida com caixa alta, mas não é a vida do autor, não é a literatura de que ele gosta. A histórias dos homens é sempre menos interessante do que a vida dos artistas.

Não é, no sentido hegeliano, uma descrição sistemática de tudo e do Todo. Pelo contrário, é a visão que um grão de poeira tem do universo. Não está sequer em causa a qualidade das respostas que encontra, só lhe interessam das perguntas, a perplexidade e o deslumbramento. E essas perguntas relacionam-se sempre com o além, com a perplexidade de quem, não acreditando em nada, sente coisas extraordinárias. Coisas indizíveis sobre a vida, o amor e a morte. Ou não fosse a raiz latina para escatológico aquilo que está além, que é do domínio do fim do mundo.

Nos últimos filmes, César insiste na ideia de que tem um “feitio religioso” e de que é “o último dos crentes”. Nas infinitas variações que dá ao tema há um denominador comum que é a ideia de uma religião sem deus, cujos rituais são inspirados em mais um ramo da família espiritual do cineasta: Sade e Bataille. Basta lembrar a “História do Olho”, do francês, para perceber de onde vêm os ovos da Comédia de Deus. Este clássico da literatura erótica de 1928, conta a história de um jovem casal que explora os limites do interdito sexual. Jogam com ovos, leite e fluídos corporais. Basta pensar em “A Filosofia na Alcova”, do Marquês, para perceber de onde chegam as jovens púberes de César. (JCM tinha o plano de adaptar este livro para a tela depois de Branca de Neve. Abandonou-o ao saber que tinha muito pouco tempo de vida e optou pelo filme-funeral – Vai & Vem.) Deste hiper-realismo fundado na recusa da representação emerge então o mundo fantástico de João César Monteiro, mais real do que o real. A personagem acabada deste mundo surge no derradeito filme: é a criança que toca acordeão no autocarro levando às cavalitas um cão que traz na boca o recipiente da esmola. É uma personagem brutal que existe de facto, ainda deambula pelos transportes públicos de Lisboa. É mais bizarra do que as figuras míticas dos bestiários. Está viva, é apenas resultado da profunda lucidez de um cineasta que, se pudesse, filmava sem câmara.

Ora do que é que se está a tratar quando se fala em ovos, infância e virgindade senão na própria vida e dos seus mistérios fundamentais? Toda a obra de César caminha entre estes dois mundos, o da imanência e o da transcendência. A ritualização do sexo, a introdução de rituais mais ou menos sacrificiais faz parte dessa alquimia. Mas há limites muito claros neste jogo.

O próprio filme fornece as respostas: a parte laboratorial do processo criativo do geladeiro João de Deus consiste em banhar uma adolescente em quarenta litros de leite. Durante a imersão, na sequência de atribulações como a queda do geladeiro para dentro da banheira, Joaninha perde “umas gotinhas de urina”. Mais tarde, esse leite será coado (os pêlos púbicos serão devidamente arquivados na colecção do geladeiro) e aproveitado para criar um “novo e maravilhoso perfume” de gelado. Pouco depois, sentada na retrete, Joaninha (que constantemente alterna com João de Deus nos papéis de vítima e de vampiro) pergunta: “quer que lhe guarde a caquinha?” ao que o geladeiro responde, grave e sério “não, tudo o que é demais cheira mal”.

A intenção demiúrgica da obra aparece logo no primeiro plano do filme, com uma imagem dos astros e uma criança a dizer: “Joaquim Pinto apresenta … a Comédia de Deus de João César Monteiro” para logo se escangalhar a rir. É o sagrado possível. Sobre estas coisas do além julgo ser de bom tom, e digo isto modestamente, dar a última palavra ao artista:

“chamar-lhe ars poética são grandes palavras, mas, a propósito da Casa Amarela, certa crítica cega, surda e muda (…) tomou-me por uma espécie de cineasta abjeccionista. Ora, é preciso não saber ver. A questão parece-me de uma evidência total. Para já não sou um cineasta da abjecção. Sou um cineasta da abominação. Há coisas que são abomináveis e isso eu mostro. Eu faço filmes para mostrar isso. (…) Andamos aqui há anos, os filmes seguem-se uns aos outros e há uma lógica nisto tudo: é passar da abominação ao sagrado. E o sagrado é qualquer coisa que se toca. Que se toca tentando não profanar. Não profanar o quê? Não profanar o real. Isto é, o real é o que é, e toda a forma de manipulação repugna-me. Quanto ao religioso, sim, mas no sentido de estar religado às coisas, aos seres (…) O cinema é um mundo que está desabitado e nós sonhamos ser habitantes desse mundo. É nesse sentido, também, que não me sinto um cineasta português. Considero-me cineasta, ponto. O cinema para mim não é português, nem chinês nem americano. É o cinema, o desejo de criar um mundo, é o desejo que nasce quando o homem sai da caverna, sai verticalmente da caverna, com a lenta evolução da espécie (…) olha a realidade circundante e se começa a fazer perguntas. Perguntas sobre o que o rodeia, o seu próprio corpo – está inscrito em Lascaux, na mãozinha impressa na caverna. É o desejo de projectar o seu próprio corpo numa superfície.” (in entrevista “O Sagrado e o Profano”, com José Rodrigues da Silva, catálogo cinemateca)


Bibliografia

• Paula Soares in João César Monteiro, Personagem Habitada, 2005
• Vários in João César Monteiro, Catálogo da Cinemateca Portuguesa, 2005 (todas as citações excepto as assinaladas)
• Mário Barroso, Joaquim Pinto, Cláudia Teixeira, Jean Douchet, Vítor Silva Tavares in extras dvd Comédia de Deus Madragoa Filmes, 2004
.: Publicado por lgm @ 11/18/2006 - 0 Comentário(s)
Não, não pode ser um deja vu porque tu não tinhas essa t-shirt vestida.
.: Publicado por lgm @ 11/18/2006 - 0 Comentário(s)
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